Crônica

Crises existenciais de origem duvidosa

Crises existenciais de origem duvidosa

Literatura, facebook, salão de beleza e mesa de bar não são divãs, eu sei, todo mundo já disse. Mas — ditas, escritas, pronunciadas com puro sentimento — as palavras jamais serão em vão, mesmo que elas, eventualmente, de tão ruins, se prestem a todo esquecimento. Ultimamente — peso da idade? — tenho enxergado a vida como se estivesse dentro de um tudo de ensaio (ela, a vida, no interior do observatório).

Diz-me por onde olhas e te direi quem és

Diz-me por onde olhas e te direi quem és

Haverá olhos bonitos de olhar? A pergunta assoma neste instante. Donos de brilho repentino, luz clara, safra guardada na adega das recordações-de-todo-o-sempre. Normalmente nossa curiosidade visual fareja dissimulados esconderijos da rotina. Segredos trancafiados em gavetas do vizinho, que pretendemos expor a qualquer custo. Olhos esfaimados, dentados, vorazes e sanguinolentos, visando encontrar no ziguezague de filas intermináveis diante do filme de estreia, uma vaga esperta para se enfiar sem ser notado.

Dez culpas esfarrapadas

Dez culpas esfarrapadas

Ante a imensa ignorância vicejante na humanidade, esta se trata de uma das desculpas esfarrapadas mais utilizadas quando algo vai mal ou dá errado. É desculpa boa de se dizer quando resta quase nada a se dizer. Aceitar decessos e falências como situações plausíveis já seria o suficiente, mas… Não. Há sempre que se imputar a culpa a algo ou alguém: o mordomo, o gato preto, a casca de banana, a falta de palmadas nos filhos, a internet, as redes sociais, a preguiça do baiano, o médico cubano, a alergia à lactose.

Quando a máquina trava, a vida liberta

Quando a máquina trava, a vida liberta

Três e meia da manhã. Dezenove horas depois do início da lida diária, a pobre diaba mofando no trabalho insano, em alguma sala acesa de um prédio comercial obscuro, assiste estarrecida a uma tragédia: o maldito computador decidiu travar. Em sua insônia compulsória, a mulher sozinha e esgotada inveja a tela negra desabada em sono profundo. Queria dormir. Dormir até esquecer o próprio nome.

Ser a outra não é para qualquer uma

Ser a outra não é para qualquer uma

A outra costuma andar deslizando. Coleante e tortuosa como uma cobra. E chega com um breve silvo, se insinuando à meia luz na vida de um homem qualquer. Muitas vezes se veste de vermelho. Embora tenha veias hirtas, corre nelas um sangue quase espumoso, de um vermelho sacrílego, que trafega nos interstícios desse corpo. Ela até nos faz recordar daquele ditado sobre a inveja. Um prato que se come frio e que está sempre ali disposto à serventia.