Autor: Enio Vieira

Como a literatura mostra o trauma das ditaduras na América do Sul Foto / Cris Faga

Como a literatura mostra o trauma das ditaduras na América do Sul

Cada região do mundo tem um grande assunto para a ficção enfrentar, tanto no presente como no passado. Segundo Perry Anderson, os africanos e indianos lidam com questões do colonialismo. Europeus carregam o peso do nazismo e da migração atual oriunda de suas antigas colônias. Os norte-americanos possuem o fardo da escravidão e da paranoia de ser uma potência imperialista. Já a literatura da América Latina, diz o historiador, vive a memória catastrófica das ditaduras militares do século 20.

O Conde, na Netflix, faz um grande retrato da ditadura chilena e de seu criador Pinochet Pablo Larrain / Netflix

O Conde, na Netflix, faz um grande retrato da ditadura chilena e de seu criador Pinochet

Vampiros, lobisomens, anjos, unicórnios e diabos jamais existiram, mas qualquer pessoa sabe as formas desses seres, graças às artes. Em sentido contrário, há ditadores e nazistas, por exemplo, dos quais se tem dificuldade de fixar suas imagens — cabendo mais à ficção a tarefa de capturar as coisas impensáveis que eles fizeram. Lançado na Netflix, o filme “O Conde” do chileno Pablo Larraín surpreende ao criar uma sátira política e irrealista sobre Augusto Pinochet, por meios das figuras do vampirismo.

Golpe chileno de 1973 encerrou o boom literário na América Latina

Golpe chileno de 1973 encerrou o boom literário na América Latina

Um dos maiores fenômenos latino-americanos foi a geração de escritores surgidos ao longo da década de 1960. A partir de uma sacada de mercado, espalharam-se pelo mundo os livros de Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Julio Cortázar, entre outros. Ocorreu um verdadeiro “boom”, nome de batismo pelo qual ficou conhecida essa onda. A novidade era a cultura local, com traços indígenas, africanos, que filtrava a forma do grande romance europeu e do norte-americano.

O Brasil da série Cangaço Novo Divulgação / Amazon Studios

O Brasil da série Cangaço Novo

As cidades interioranas estão na pauta do momento, servindo de espaço ficcional para filmes, romances e séries de streaming. Parece haver, na verdade, um esgotamento da metrópole moderna como assunto e, ao mesmo tempo, a redescoberta do universo rural. Os olhos se voltam para um cenário que carrega simultaneamente os traços urbanos e os rurais: motocicletas, picapes SUV, telefones celulares, pequenas fazendas, caatinga, em meio às relações sociais bem brasileiras e tenebrosas. 

Deus e o diabo no ‘Faroeste caboclo’

Deus e o diabo no ‘Faroeste caboclo’

O sonho do Brasil moderno foi a passagem da vida no meio rural para o espaço urbano. Como se imaginou a partir dos anos 1930, o deslocamento deveria trazer o trabalho decente nas indústrias, os direitos, as melhorias de saúde e educação, viver nas cidades. Ficaria para trás o universo do campo regido por atraso, laços de religião e exploração dos miseráveis, sobretudo aqueles que nasciam e moravam na região Nordeste. Essa narrativa da migração alimentou uma série de livros, filmes e músicas populares, desenhando um imaginário do país por um longo período.