O filme que entra em silêncio… e fica na sua cabeça por dias — na Max agora mesmo Divulgação / Killer Films

O filme que entra em silêncio… e fica na sua cabeça por dias — na Max agora mesmo

O que acontece quando a mente, até então precisa e invencível, começa a falhar no seu próprio ofício? Quando a consciência de si se despedaça em fragmentos imprecisos, e cada gesto cotidiano exige o esforço de um ritual arcano, a existência ganha contornos de um drama íntimo e brutal. A protagonista desta devastação é uma mulher intelectualmente exuberante, professora de linguística respeitada, cuja vida bem estruturada — casamento estável, filhos promissores, carreira admirável — começa a ruir quando episódios de confusão e lapsos sutis de memória revelam algo mais sombrio: um diagnóstico de Alzheimer precoce. O que antes eram esquecimentos banais transformam-se em abismos de desorientação: palavras fogem, rostos tornam-se enigmas, e tarefas simples exigem tutoria digital. Nada mais é garantido. Nem a linguagem, nem a memória, nem o próprio lar.

A experiência de assistir a esse colapso mental é amplificada pela atuação meticulosa de Julianne Moore, que inscreve sua Alice entre os retratos mais inquietantes da vulnerabilidade humana no cinema contemporâneo. Longe de composições exageradas, Moore adota uma contenção que fere mais do que grita. Sua trajetória como intérprete é marcada justamente por essa rara habilidade de sustentar a densidade emocional em silêncio, como demonstrado em personagens complexas ao longo de décadas: seja na languidez desesperada de “As Horas”, na contenção elegante de “Direito de Amar” ou na artificialidade calculada de “Segredos de um Escândalo”. Em “Para Sempre Alice”, sua performance não apenas conduz o filme — ela o ancora naquilo que há de mais visceral: o medo da dissolução de si. Não foi coincidência que a Academia finalmente a reconheceu com um Oscar, após anos sendo ignorada em papéis igualmente memoráveis.

Por trás da câmera, Richard Glatzer e Wash Westmoreland compreendem que este não é um drama sobre a espetacularização da doença, mas sobre a intimidade do apagamento. Ao adaptar o romance de Lisa Genova, os diretores estabelecem uma espécie de pacto com o espectador: olhar para a degradação cognitiva não com piedade, mas com atenção radical. A escolha por privilegiar o cotidiano — as aulas na Universidade Columbia, as interações familiares, os pequenos esquecimentos que se acumulam até se tornarem insustentáveis — é a chave para a potência do filme. Em vez de construir um labirinto narrativo, Glatzer e Westmoreland deixam que o verdadeiro labirinto seja o da mente de Alice, permitindo ao público perder-se junto com ela. A ironia de uma linguista incapaz de nomear objetos banais é tão devastadora quanto qualquer clímax dramático. E quando ela revela seu diagnóstico a superiores que mal disfarçam o incômodo, não há trilha sonora que precise sublinhar o absurdo cruel dessa cena.

Há, porém, uma tensão latente entre o racional e o afetivo, especialmente na dinâmica entre Alice e sua filha Lydia, interpretada por Kristen Stewart com intensidade seca. Lydia não representa apenas o contraponto boêmio em relação aos irmãos bem-sucedidos; ela é a única que decide permanecer, escutar, adaptar-se. A relação entre ambas, construída sobre silêncios e desencontros, transforma-se aos poucos em uma linha de resistência, um lugar onde a palavra — mesmo quando ausente — ainda carrega sentido. Alec Baldwin, como o marido que tenta equilibrar amor e autodefesa, contribui para um retrato honesto de uma família desintegrando-se sob o peso de uma condição que nenhum afeto consegue deter por completo. Cada cena entre eles é marcada por um desconforto sutil, como se a normalidade estivesse sempre prestes a romper.

A estética do filme, ainda que por vezes comprometida por decisões discutíveis — a iluminação por vezes plana, a trilha sonora intrusiva —, acaba por contribuir, talvez involuntariamente, para a sensação de descompasso que permeia toda a narrativa. O mundo ao redor de Alice permanece funcional, mas ela já não consegue habitá-lo com a fluência de antes. O enquadramento fixo das cenas, o ritmo progressivamente mais lento, e até mesmo os gestos mínimos da personagem constroem um espaço dramático onde o tempo deixa de ser linear. O Alzheimer não é uma metáfora — é uma presença, um desarranjo concreto que invade todos os espaços do existir.

A morte de Richard Glatzer, pouco após a estreia do filme, vítima de esclerose lateral amiotrófica, projeta uma sombra ainda mais densa sobre a produção. Se a obra trata do desaparecimento gradual da mente, o destino do cineasta parece dialogar com uma tragédia em espelho. O que “Para Sempre Alice” nos oferece, portanto, não é apenas uma representação sensível de uma doença devastadora, mas também um lembrete de que o cinema, em sua melhor forma, é capaz de capturar o impalpável: a transição entre o ser e o não mais saber ser. E talvez aí resida seu maior mérito — fazer do invisível algo que permanece. Mesmo que a memória já não possa alcançá-lo.

Filme: Para Sempre Alice
Diretor: Richard Glatzer e Wash Westmoreland
Ano: 2014
Gênero: Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★