Só vai dar tempo de ver um filme? Então que seja o novo de Liam Neeson, já no Prime Video Divulgação / Imagem Filmes

Só vai dar tempo de ver um filme? Então que seja o novo de Liam Neeson, já no Prime Video

A obstinação de Hollywood em revisitar arquétipos masculinos encontra em Liam Neeson um instrumento particularmente funcional — e talvez relutante. Sua trajetória não se ancorou apenas em talento ou carisma, mas numa convicção reiterada: a de que certos papéis, por mais exauridos que estejam, ainda podem ser revigorados se sustentados por um ator disposto a abraçar o desgaste. “Último Alvo” não reinventa essa fórmula, mas a intensifica, impulsionando Neeson mais uma vez ao território instável do homem que já errou demais, mas que ainda quer acertar — nem que seja à sua maneira torta. Não há aqui lugar para a assepsia do politicamente correto, tampouco concessões à moralidade diluída de nosso tempo: o protagonista, que nem nome tem, é um resquício em carne viva de um código de conduta em vias de extinção.

Para dar corpo a essa empreitada, Hans Petter Moland mobiliza sua conhecida aptidão para tensionar limites éticos com precisão escandinava. Sua direção, mais fria do que enfática, entrega a Neeson um espaço onde o gesto mínimo carrega implicações imensas. O roteiro de Tony Gayton bebe da fonte de quase tudo que o ator já fez no gênero, mas não resvala no automático graças à atenção conferida aos personagens secundários, que não orbitam o anti-herói como satélites passivos. Cada um deles parece respirar sua própria tragédia, o que torna o todo menos previsível do que poderia ser. “Último Alvo” não é apenas um exercício de estilo — é um retrato amargo do que resta quando a violência já se tornou rotina e a redenção, um luxo improvável.

Esse homem anônimo — ex-pugilista de punhos gastos e silêncios longos — serve a dois senhores: o mafioso veterano Charlie Conner e seu filho, Kyle, um herdeiro desprovido de estofo. Ele é executor, motorista, segurança, confidente. Mora num quarto modesto, sem adornos, onde espera ordens que chegam sem empatia. A vida que leva não lhe pertence: é um prolongamento da vontade alheia. Sua identidade, por escolha ou exaustão, tornou-se maleável. No fundo, ele já deixou de existir como indivíduo, tornando-se apenas função — algo que se aciona, que se usa, que se descarta.

A notícia de que seu cérebro está condenando-o pouco a pouco à dissolução final — um diagnóstico de Encefalopatia Traumática Crônica — não o abala da forma esperada. A morte, para ele, já é hóspede habitual. Mas esse prenúncio serve ao diretor como brecha para reintroduzir um elo antigo: uma mulher sombria, de passado compartilhado e filha em comum. O reencontro não é romântico nem catártico — é apenas necessário. Yolonda Ross e Frankie Shaw surgem como lembranças tangíveis de um afeto interrompido, que talvez nem mereça ressurreição, mas ainda exige alguma forma de ajuste de contas.

Se há algo que o filme entende bem é que redenção não se conjuga em grandes gestos, mas em insistências pequenas, quase imperceptíveis. O personagem de Neeson não busca perdão porque reconhece o próprio passado como irredimível — busca apenas deixar algum vestígio menos corrosivo para quem segue adiante. Por isso, mesmo os antagonistas, encarnados com ferocidade por Ron Perlman e Daniel Diemer, parecem menos obstáculos do que espelhos: reflexos de tudo que ele já foi ou poderia ter sido. As batalhas físicas, embora ainda presentes, cedem espaço a uma guerra interna mais complexa — aquela que se trava entre o que resta fazer e o tempo que já não há.

Embora o filme denuncie certo cansaço formal, é precisamente nesse desgaste que reside sua melancolia mais eficaz. Liam Neeson já não impressiona pela força ou agilidade, mas pela maneira como deixa transparecer o esgotamento de quem lutou tempo demais. O que se vê em tela é uma despedida disfarçada de rotina: o último fôlego de um tipo de personagem que, como o próprio ator, já não se encaixa mais no molde contemporâneo. Não por falta de espaço, mas por excesso de história.

“Último Alvo” talvez não se imponha pela inovação, mas pelo reconhecimento de que certas fórmulas só continuam de pé porque ainda ressoam. E se o tempo de Neeson nesse tipo de narrativa está se esgotando, sua permanência até aqui é menos um vício do que uma persistência significativa. Há algo de admirável na obstinação de quem, mesmo diante do ocaso, ainda se recusa a se tornar irrelevante — mesmo que o preço disso seja continuar apanhando.

Filme: Último Alvo
Diretor: Hans Petter Moland
Ano: 2024
Gênero: Drama/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★