Nem Agatha Christie ousaria tanto: o suspense que está viralizando na Netflix é real e devastador Divulgação / Netflix

Nem Agatha Christie ousaria tanto: o suspense que está viralizando na Netflix é real e devastador

A encenação do caos em “iHostage” não se limita a um episódio insólito em Amsterdã; ela age como um reflexo agudo das fissuras que percorrem o tecido social contemporâneo. No coração da Europa dita civilizada, um atentado contra a segurança coletiva não apenas irrompe, mas expõe contradições que já não podem ser ignoradas. A obra conduzida por Bobby Boermans não se contenta com o registro factual do ocorrido em 22 de fevereiro de 2022 — quando um homem armado sequestrou clientes numa loja da Apple e exigiu criptomoedas e fuga. Ela transforma o insólito em um campo de estudo sobre colapsos silenciosos: psicológicos, institucionais, morais. E o que emerge desse terreno instável não é um simples retrato da violência, mas uma inquietação permanente.

Boermans não apenas absorve os códigos do thriller baseado em eventos reais; ele os reorganiza com competência autoral rara. Ao contrário do que se vê em certas repetições formulaicas do gênero, aqui o suspense se infiltra sem alarde, conduzido por recursos visuais que beiram o claustrofóbico — iluminação opaca, planos fechados e alternância de ritmo precisa, orquestrados por uma montagem que respeita tanto o tempo da tensão quanto o da introspecção. A trilha de Mounir Hathout atua como uma pulsação invisível, esculpindo a ansiedade crescente sem nunca se sobrepor à densidade do momento. Em vez de homenagear obras como “Capitão Phillips” ou “22 de Julho” com reverência passiva, Boermans dialoga com elas, arriscando inserir uma assinatura própria em uma galeria até então dominada por Paul Greengrass.

Há, contudo, algo mais ambicioso no centro dessa construção: uma tentativa de flagrar, com nitidez desconcertante, o esfacelamento ético promovido pelo modelo econômico vigente. Em nenhum momento o roteiro comete o erro de vilanizar a vítima ou romantizar o agressor. Tampouco adere ao discurso “neutro” que tão frequentemente se revela uma forma disfarçada de omissão. O que se desenha é um retrato tortuoso de um sistema que falha em proteger e, mais grave, empurra alguns para um abismo sem retorno. Essa complexidade é representada com propriedade por Soufiane Moussouli, cuja performance vai além da superfície psicológica e ressoa como um grito abafado por décadas de negligência estrutural.

As primeiras cenas, com a entrada abrupta do agressor no ambiente reluzente da loja e a rápida reação policial, estabelecem de imediato o tom de urgência. No entanto, a cadência narrativa evita a histeria e aposta na inteligência do espectador para perceber os subterrâneos da violência. A personagem de Moussouli, ao mesmo tempo inquietante e enigmática, não solicita piedade, mas provoca perguntas. Ao lado dele, o policial vivido por Matteo van der Grijn representa o olhar externo, aquele que tenta compreender sem se perder na empatia fácil. É pela ótica desse homem — posicionado dentro da tensão, mas sem domínio sobre ela — que o público é convocado a refletir sobre a gênese do caos.

Mas é na figura de Valerie que o filme decide contrariar o comodismo narrativo. A personagem interpretada por Jasmine Sendar rompe a previsibilidade do heroísmo convencional ao exibir uma coragem que não é pura nem isenta de impulsividade. Há na entrega dessa policial um traço de fé irracional, uma crença pueril de que o sacrifício pessoal pode redimir a ordem ferida. E é nesse paradoxo que a trama encontra sua pungência final: o heroísmo, quando contaminado por ingenuidade, aproxima-se perigosamente da autodestruição — uma reflexão que não suaviza o filme, mas o amplia para dimensões morais mais áridas e instigantes.

“iHostage” não recorre a atalhos emocionais, nem oferece catarse ao espectador. Ao contrário, interrompe qualquer impulso de assimilação fácil, preferindo lançar perguntas que ecoam após o silêncio da última cena. O que permanece não é a lembrança de um evento extraordinário, mas o desconforto de perceber que o extraordinário está cada vez mais próximo do cotidiano. E nesse desconforto, talvez, resida sua grandeza.

Filme: iHostage
Diretor: Bobby Boermans
Ano: 2025
Gênero: Crime/Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★