“Mickey 17”, dirigido por Bong Joon-ho, atravessa os limites usuais da ficção científica e chega como uma anomalia narrativa que combina a brutalidade institucional da colonização espacial com a perplexidade existencial de um homem que descobre ser substituível por design. Não se trata de um filme sobre clonagem, mas de um ensaio corrosivo sobre identidade, poder e obsolescência humana — um labirinto ético onde o humor, o absurdo e o horror caminham lado a lado. Ao se reinventar após o triunfo global de “Parasita”, Bong abandona qualquer zona de conforto e adota uma abordagem que beira o caótico, desconstruindo os pilares do heroísmo e da lógica em favor de um caos estruturado que desafia expectativas a cada virada.
O protagonista, Mickey Barnes, já começa sua jornada como um sujeito derrotado, fugindo da falência na Terra apenas para aceitar o papel mais humilhante e brutal da nova ordem interplanetária: o de “descartável”. Seu contrato com a missão em Niflheim não exige bravura, mas apenas a disposição para morrer — repetidas vezes, em nome da produtividade. Cada reencarnação vem com a lembrança da anterior, mas também com a certeza de que nada, nem mesmo o sofrimento, o tornará indispensável. Quando, por um capricho da sorte ou erro do sistema, a 17ª versão de Mickey sobrevive e retorna apenas para descobrir que já foi substituído pela 18ª, o filme engata uma espiral de conflitos que transbordam a simples ficção especulativa. O dilema não é mais sobre viver ou morrer, mas sobre quem tem o direito de reivindicar uma existência.
Essa colisão entre cópias de um mesmo homem revela um paradoxo devastador: quanto mais Mickeys são gerados, menos singular cada um se torna, mesmo que suas experiências os tornem distintos. Robert Pattinson interpreta esse abismo interno com notável maleabilidade, esculpindo dois Mickeys contrastantes — um entorpecido pela resignação, outro inflamado pela insubordinação. A performance é deliberadamente irregular, oscilando entre o ridículo e o trágico, e essa oscilação é precisamente o que a torna fascinante. Não há esforço por empatia fácil. O que se constrói é um retrato do esfacelamento do eu diante da lógica fabril da clonagem, onde até a alma se torna um bem replicável.
O universo de “Mickey 17” não é um pano de fundo, mas uma engrenagem opressora. Bong constrói Niflheim como um não-lugar — estéril, glacial, imensamente burocratizado — onde o espaço físico funciona como extensão da política de descarte que rege a missão. A estética industrial, os figurinos pesados e os corredores labirínticos formam um cenário que tanto aprisiona quanto homogeneíza. As metáforas visuais não se escondem: a alimentação racionada, a segregação dos ambientes e a ritualização da morte transformam o cotidiano da tripulação em uma liturgia do desespero. Ao contrário de outras distopias que flertam com o espetáculo da destruição, aqui o colapso é metódico, regulado, com formulários em triplicata.
A direção de Bong, longe de conter suas obsessões temáticas, as libera como um fluxo torrencial. “Mickey 17” se estrutura como um anti-épico: não há missão gloriosa, não há sacrifício redentor, não há ordem restaurada. Cada conceito — seja ele filosófico, político ou tecnológico — é tensionado até o ponto de saturação. A sátira política, por exemplo, não mira alvos genéricos: toma forma nas figuras grotescas de Mark Ruffalo e Toni Collette, representantes de uma elite que se retroalimenta de privilégio enquanto parasita a força de trabalho clonada. Ruffalo encarna um líder vaidoso e incoerente, moldado à imagem dos tecnocratas populistas contemporâneos, enquanto Collette transforma a alta gastronomia em um delírio aristocrático, revelando o abismo entre o luxo performático e a escassez funcional.
Há uma beleza quase contraditória no modo como Bong organiza o caos: a ausência de centro não implica perda de coesão. Pelo contrário, é nesse excesso proposital de ideias, imagens e tons que o filme encontra sua identidade. Ele se recusa a escolher entre sátira, thriller, drama existencial ou fábula política, porque sabe que a experiência humana, especialmente quando industrializada, não cabe em um único gênero. Essa recusa ao encaixe o aproxima do grotesco literário — uma linguagem onde o riso e o horror são simultâneos e indissociáveis.
No entanto, em meio à engrenagem impessoal que devora sujeitos e repete corpos, há rachaduras por onde a intimidade escapa. Naomi Ackie interpreta Nasha, uma personagem que recusa ser coadjuvante na lógica do herói masculino e funciona como uma âncora ética do enredo. Sua relação com Mickey vai além do romance: ela é a guardiã de sua memória emocional, o elo que ainda conecta o descartável a algo que resista à padronização. Seu olhar não restaura Mickey como herói, mas o reconhece como alguém cuja dignidade precisa ser lembrada — mesmo quando esquecida por todos os sistemas ao redor.
No fundo, o que Bong realiza com “Mickey 17” é uma pergunta em forma de pesadelo: o que nos torna únicos quando tudo em nossa existência é passível de substituição? E mais: até que ponto aceitamos nossa repetição como condição de sobrevivência? Ao evitar respostas fáceis, ao recusar a linearidade e ao se entregar ao desconforto da multiplicidade, o filme convoca o espectador a se mover com ele — não em busca de sentido, mas em busca de uma fricção real com o absurdo de existir.
Assim, “Mickey 17” não quer agradar nem confortar. Quer inquietar. E nessa provocação há algo raro: uma ficção que não deseja projetar o futuro, mas colapsar o presente — com todos os seus clones, paradoxos e promessas estéreis.
★★★★★★★★★★