O tesouro cinematográfico que vai te fazer se sentir dentro de um enigma de Agatha Christie, na Netflix Divulgação / Focus Features

O tesouro cinematográfico que vai te fazer se sentir dentro de um enigma de Agatha Christie, na Netflix

Na penumbra de uma alfaiataria anônima, onde o silêncio parece ecoar mais alto do que qualquer grito, desenrola-se um jogo de inteligência em que o corte das palavras fere com a mesma precisão de uma lâmina afiada. “O Alfaiate”, dirigido por Graham Moore, utiliza o confinamento espacial não como limitação, mas como arma dramática. A Chicago de 1956, fria e indistinta do lado de fora, encontra dentro desse ateliê um campo de tensão psicológica que rivaliza com o teatro claustrofóbico de Pinter e a manipulação narrativa de Hitchcock. É nesse ambiente restrito que Moore estrutura uma narrativa rigorosa, onde o espaço cênico — reduzido ao estritamente necessário – funciona como um cofre de segredos, prestes a explodir com o menor descuido.

Leonard, interpretado por Mark Rylance com uma contenção quase hipnótica, não é simplesmente o homem que corta ternos. Ele é um mestre em aparências, um artífice da invisibilidade, alguém cuja autoridade está no domínio absoluto da escuta e da observação. Ao corrigir os que o chamam de alfaiate, ele não faz uma distinção vaidosa — mas filosófica. O “cortador”, como prefere ser chamado, é aquele que conhece as entranhas da peça, sua estrutura interna, aquilo que não se vê quando o produto final reluz. Essa metáfora percorre todo o filme: enquanto os outros personagens se enredam na superfície dos acontecimentos, Leonard circula entre eles como alguém que entende que o essencial se costura por dentro.

O roteiro, elaborado por Moore em parceria com Johnathan McClain, é engenhoso não por buscar a grandiosidade do inesperado, mas por arquitetar o previsível com tamanha astúcia que o previsível deixa de sê-lo. Uma única sala, meia dúzia de personagens e uma série de diálogos carregados de duplos sentidos bastam para construir um suspense que jamais recorre ao espetáculo. Aqui, o medo não vem do que se vê, mas do que é velado; a violência não irrompe com fúria, mas se insinua nos detalhes, nos silêncios, nos gestos contidos. O que parece ser um mero jogo entre mafiosos revela-se, aos poucos, um estudo profundo sobre o controle: de espaço, de narrativa e, principalmente, de percepção.

Mark Rylance domina esse campo minado com uma performance que se move entre o estoicismo e a astúcia, habitando um personagem que observa mais do que reage e manipula sem jamais levantar a voz. Leonard é um personagem construído em camadas, como as peças que costura: sob a superfície tranquila, há vestígios de passado, de conhecimento, de um domínio sobre o próprio tempo que escapa aos demais. Sua presença silenciosa torna-se, aos poucos, a engrenagem oculta de toda a dinâmica em cena. E como toda engrenagem, sua importância só é percebida quando tudo começa a ranger.

O elenco de apoio opera como as linhas que, invisíveis, mantêm o tecido unido. Zoey Deutch dá à secretária Mable um senso de propósito e independência que desafia o papel que lhe seria reservado num filme convencional. Dylan O’Brien e Johnny Flynn, como os rivais Richie e Francis, encarnam dois polos de instabilidade: o primeiro, impulsivo e inseguro; o segundo, brutal e metódico. As tensões entre eles não são apenas fruto do conflito entre gangues, mas de uma guerra mais profunda — entre o barulho e o cálculo, entre o improviso e a estratégia. O filme extrai força justamente dessa fricção entre estilos, fazendo do confronto algo mais simbólico do que literal.

A fita misteriosa que move a trama, o tal “MacGuffin”, não é relevante por seu conteúdo, mas por aquilo que representa: um teste de lealdade, um catalisador de paranoias, um espelho do poder que muda de mãos conforme o controle da narrativa escapa. Graham Moore lida com esse elemento clássico do suspense com surpreendente sobriedade. Não há pirotecnia nem revelações gritadas — apenas a progressão inevitável de um plano que se desenha no compasso da costura de Leonard. É um thriller onde a tensão se acumula como um fio que, puxado discretamente, ameaça desfazer todo o tecido ao qual os personagens se agarram.

Mais do que uma homenagem ao noir, “O Alfaiate” opera como sua reinvenção. A estética contida, os diálogos cuidadosamente ambíguos, a iluminação que recorta silhuetas e transforma o ateliê em um palco de sombras — tudo colabora para construir um ambiente de ilusão calculada. Mas o que diferencia Moore não é a adesão à fórmula, e sim a subversão silenciosa dos seus códigos. A teatralidade aqui não é enfeite; é armadilha. Cada personagem acredita dominar o jogo até perceber que foi encenado o tempo todo. E nesse palco de vaidades e simulações, Leonard se ergue como o verdadeiro diretor de uma peça que os outros mal percebem estar representando.

O filme termina não com uma explosão, mas com um ajuste — preciso, frio e definitivo. O espectador, até então preso ao labirinto de pistas e jogos de poder, se dá conta de que a vitória de Leonard não está em derrotar ninguém diretamente, mas em costurar, ponto a ponto, o caminho até que os outros personagens costurem sua própria queda. Não é um golpe de mestre, mas a vitória da paciência sobre o impulso, da leitura atenta sobre a pressa cega. Como Leonard deixa claro, há quem vista ternos e quem os corte. A diferença está em entender, com mãos firmes e olhos atentos, onde aplicar o fio – e quando puxá-lo.

Filme: O Alfaiate
Diretor: Graham Moore
Ano: 2022
Gênero: Crime/Drama/Mistério/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★