Poucos filmes conseguem lidar com o absurdo sem recorrer à caricatura. “E Se Fosse Verdade” parte de um enredo que, em mãos menos hábeis, seria facilmente engolido pelo melodrama ou pela ingenuidade do sobrenatural. Mas o que poderia ser apenas mais uma fábula romântica entre vivos e “desencarnados” ganha contornos mais complexos ao explorar, com surpreendente leveza, uma verdade difícil de encarar: o quanto adiamos a conexão humana em nome de uma vida funcional.
A trama se apoia em dois extremos emocionais que raramente dialogam com tanta organicidade: a solidão do luto e a alienação da rotina. Elizabeth (Reese Witherspoon), médica exemplar que reduziu a própria existência ao exercício profissional, é forçada a parar — mas não no sentido comum do verbo. Após um acidente que a deixa em coma, ela se torna presença invisível no apartamento onde vivia. E é justamente nesse espaço que se dá o encontro com David (Mark Ruffalo), arquiteto paisagista aprisionado no luto recente pela perda da esposa, que acaba de alugar o imóvel. O que se inicia como uma convivência absurda entre um cético exausto e uma “fantasma” determinada se transforma, aos poucos, num campo de descobertas mútuas.
Ao contrário das fórmulas típicas do gênero, o filme evita o encanto instantâneo. O que se constrói entre Elizabeth e David é menos uma paixão súbita e mais um desnudamento emocional gradual. A cada diálogo atravessado por sarcasmo e incredulidade, emerge um vínculo forjado na frustração, no medo e na recusa em ceder ao que se perdeu. É por meio de pequenos gestos — uma troca ríspida, um silêncio desconcertante, um cuidado disfarçado de teimosia — que se revela o que há de mais potente: a vulnerabilidade partilhada.
A direção não se apressa em provar a veracidade da presença de Elizabeth nem insiste em converter David à crença no sobrenatural. O filme compreende que a lógica emocional opera em outro tempo. A dúvida, o espanto e até o ridículo das situações — como quando David é flagrado debatendo com o nada — funcionam menos como artifício cômico e mais como espelho da própria experiência do luto, sempre cercada por confusão, incredulidade e tentativas desesperadas de reconexão com aquilo que escapou. O elemento sobrenatural não serve como resposta, mas como provocação: o que estamos realmente dispostos a ver quando tudo nos empurra para o invisível?
A escolha por manter Elizabeth como presença perceptível apenas por David é decisiva. O filme recusa a lógica do contato físico como único meio de aproximação e desloca o afeto para o campo da convivência forçada, das conversas noturnas e dos desacordos domésticos. Em vez de paixões arrebatadoras, o enredo aposta na convivência como meio de transformação. Elizabeth, que em vida ignorava as próprias emoções, precisa redescobrir quem era através do olhar de alguém que a conheceu apenas em sua ausência. David, por sua vez, precisa enfrentar o trauma de perder para então permitir o encontro.
Quando a trama revela que Elizabeth está viva, hospitalizada e inconsciente, o tom do filme se desloca com habilidade: o romance flerta com o heist movie, transformando o amor em motivação para um plano inusitado — salvar alguém de ser desligado dos aparelhos que a mantêm respirando. A ação é inverossímil, mas jamais tola. Ao contrário, é nesse ponto que o filme articula seu gesto mais radical: recusa o tempo clínico da medicina e propõe uma lógica afetiva para a sobrevida. Aqueles que cercam David — o amigo incrédulo, o livreiro esotérico, os colegas desconfiados — oscilam entre a zombaria e a ajuda relutante. E é nessa hesitação coletiva que o filme encontra sua força: ninguém está completamente certo, mas todos pressentem que algo precisa ser feito.
O cenário urbano de São Francisco, com suas colinas irregulares e vistas deslumbrantes, funciona como espaço intermediário entre o tangível e o etéreo. A cidade não é apenas pano de fundo, mas um terceiro personagem: ela acolhe o improvável, abriga os encontros fortuitos, permite que a lógica da vida cotidiana conviva com a possibilidade de um milagre. O apartamento onde tudo se passa, com suas janelas amplas e atmosfera suspensa, se converte num pequeno universo onde o impossível encontra abrigo. E isso é menos sobre estilo do que sobre perspectiva: trata-se de uma narrativa que aceita o inverossímil como linguagem do afeto.
“E Se Fosse Verdade” evita qualquer pretensão de reinventar o gênero. Mas dentro de uma estrutura reconhecível, opera uma série de deslocamentos sutis que renovam sua força. Ao se recusar a tratar o amor como destino ou explosão, o filme o constrói como insistência, como presença — ainda que intangível. Sua aposta é singela, mas contundente: talvez o que nos transforma não seja o arrebatamento, e sim a convivência atenta com aquilo que nos desafia a ver além daquilo que os olhos alcançam.
Na cena final, quando Elizabeth desperta e não reconhece David, o roteiro poderia facilmente ceder à obviedade. Mas opta, mais uma vez, pelo caminho mais delicado. A memória que falta é menos importante do que o vínculo que persiste. Há algo que permanece, ainda que sem nome, ainda que fora de ordem. Algo que, como o próprio filme, se recusa a desaparecer por completo. Porque certas presenças, mesmo quando chegam sem explicação, acabam por deixar marcas que não se apagam.
★★★★★★★★★★