Há filmes que não pedem atenção — exigem silêncio. Não para que a audiência ouça melhor os diálogos, mas para que sinta o peso do que não é dito. “Era Uma Vez em Nova York”, de James Gray, finca seus alicerces nesse tipo de silêncio: o da vergonha que não se pode confessar, o da esperança contrariada, o da sobrevivência que não pede aplausos. O longa se passa em 1921, mas não se ancora na nostalgia. Sua recriação da Nova York do pós-guerra se desvia da idealização comum à maioria dos dramas de época: aqui, o sonho americano não brilha — apodrece lentamente diante dos olhos de quem ousou persegui-lo.
Logo nas primeiras cenas, Ewa Cybulska (Marion Cotillard) atravessa o labirinto de Ellis Island ao lado da irmã, Magda, cujo estado de saúde a transforma em um obstáculo à entrada nos Estados Unidos. A figura da Estátua da Liberdade, que tantas vezes foi usada como epíteto do acolhimento, aparece como pano de fundo para um gesto oposto: o de recusa. Enquanto Magda é isolada, Ewa é marcada como indesejável. O motivo? Um suposto comportamento inadequado durante a viagem — uma acusação sem rosto, mas com consequências devastadoras. O filme começa onde tantas histórias terminariam: com o fracasso da chegada.
Nesse vácuo institucional e afetivo, insere-se Bruno Weiss (Joaquin Phoenix), um homem que oferece abrigo sob a condição tácita de submissão. Ele não é o vilão clássico, nem um protetor disfarçado. É um homem comum, corroído por contradições, cuja relação com Ewa oscila entre a exploração, o desejo e uma tentativa fracassada de ternura. Phoenix evita qualquer caricatura. Sua composição expõe as rachaduras de um sujeito que se refugia na autoridade para não encarar o próprio desalento. Ao lado dele, Ewa não é uma vítima passiva, mas uma mulher cuja resistência se expressa na insistência em preservar, mesmo nos piores cenários, alguma forma de autonomia.
Cotillard esculpe essa personagem com uma contenção assombrosa. Não há explosões emocionais nem catarse visível. A dor de Ewa não busca ser reconhecida, apenas tolerada. Seu olhar — muitas vezes baixo, às vezes fixo — carrega mais eloquência do que qualquer monólogo. Ela caminha entre a sujeição e a esperança com a precisão de quem sabe que a liberdade, quando existe, não é uma dádiva, mas uma conquista provisória. Cada gesto seu é uma afirmação mínima de humanidade em um ambiente que insiste em negá-la.
A entrada de Emil (Jeremy Renner), mágico de talentos volúveis, pode parecer, num primeiro olhar, o prenúncio de uma reviravolta romântica. Mas Gray nunca cede a esse tipo de alívio fácil. Emil é um sopro de leveza, sim, mas também um lembrete de que o tempo é um luxo que Ewa não possui. Sua existência serve menos como promessa de salvação e mais como contraste: ele representa o que Ewa poderia ter desejado, se tivesse o privilégio de desejar. Renner incorpora essa ambiguidade com carisma dissonante, fazendo de Emil um personagem que ilude pela simpatia, mas desaparece quando a realidade exige sacrifício.
A Nova York que o diretor constrói é uma cidade que engole. Não há planos abertos que prometam amplitude; mesmo quando os personagens caminham ao ar livre, a atmosfera é densa, quase opressiva. O trabalho de fotografia, ancorado em uma paleta terrosa e luz rarefeita, sugere um mundo em que a esperança é sempre filtrada, nunca plena. As sombras dominam, não como estilização, mas como reflexo moral. Cada cena parece encerrada numa cápsula de tempo, como se o passado tivesse sido preservado não por reverência, mas por insistência. A trilha sonora acompanha esse sentimento: melancólica sem ser melosa, evocativa sem ser manipuladora.
James Gray, mais do que contar uma história, disseca uma sensação: a de estar num país que prometeu tudo, mas entrega apenas a chance de continuar tentando. Ele não transforma o sofrimento em espetáculo nem recorre a retóricas sobre superação. Sua narrativa, ainda que meticulosamente orquestrada, se recusa a oferecer conforto. E é justamente essa recusa que torna o filme tão potente. A densidade emocional é construída em silêncio, por meio de ações pequenas, omissões e escolhas difíceis. Ao invés de romantizar a luta, ele a retrata com uma honestidade bruta que atravessa qualquer verniz dramático.
“Era Uma Vez em Nova York” é menos sobre imigração do que sobre o exílio íntimo que cada personagem carrega consigo. Exílio de um passado idealizado, de uma identidade que não encontra lugar, de um futuro que já não se permite sonhar. Ao expor as contradições de um país que se vende como terra de acolhida enquanto ergue muros invisíveis, James Gray transforma o drama pessoal de Ewa em crônica de um desamparo coletivo. O que se vê na tela é um retrato da dignidade em estado de sítio — e isso, mais do que qualquer final feliz, é o que permanece.
★★★★★★★★★★