Em “Era uma Vez no Oeste”, Sergio Leone formula mais do que uma narrativa — projeta uma cerimônia onde o tempo não é apenas manipulado, mas reverenciado, como se cada cena operasse no compasso de um lamento ancestral. A violência aqui não explode: ela escorre, lenta, carregando consigo o sedimento de séculos ficcionais. Ao escolher situar sua fábula no limiar entre o Velho Oeste moribundo e a ofensiva industrial, Leone não apenas encena o confronto entre cowboys e locomotivas, mas dramatiza um impasse ontológico: o que acontece quando um mundo forjado no duelo é engolido pela burocracia do capital? Nesse cenário árido e crepuscular, gestos mínimos — o afugentar de uma mosca, o arrastar de botas sobre a madeira seca — ganham densidade ritual, como se a poeira sobre o deserto se recusasse a aceitar o fim que se avizinha.
A ferrovia em expansão não apenas conecta cidades, mas desarticula a espinha dorsal de uma mitologia. Os trilhos que cortam o deserto anunciam uma nova gramática do poder, na qual o coldre perde prestígio para o contrato. Ainda assim, Leone não idealiza o que foi: o Velho Oeste que retrata é também um lugar de brutalidade irredimível, em que cada avanço tem um custo. Frank, interpretado com perturbadora frieza por Henry Fonda, deseja pertencer ao futuro, mas ainda carrega o odor da pólvora. Sua transição fracassada é emblemática da falência ética do período — incapaz de abandonar a lógica do revólver, tampouco hábil o suficiente para manejar a da caneta. Já Harmonica e Cheyenne, figuras espectrais de uma ordem que agoniza, circulam pelas bordas da civilização como resíduos heroicos de uma era que já não reconhece seus próprios mitos. Ao contrário deles, Jill McBain percebe o movimento do tempo e aprende a negociá-lo. Ela não representa a virtude, mas a adaptação, e por isso sobrevive.
Se Leone oferece uma elegia à iconografia do western, é porque reconhece que ela já não basta. A trilogia anterior — “Por um Punhado de Dólares”, “Por uns Dólares a Mais” e “Três Homens em Conflito” — questionava com cinismo os pilares morais do gênero; agora, ele os recodifica sem ingenuidade. Sua câmera insiste no rosto dos personagens como se buscasse vestígios de uma ética desaparecida. A ausência de pressa é estratégica: ao retardar a ação, obriga o espectador a contemplar não o que acontece, mas o que deixou de ser possível. A cena inaugural — em que três homens esperam por um trem sob o silêncio estaladiço do calor — não inaugura uma história, mas anuncia uma extinção. Quando o trem finalmente chega e dele emerge a figura solitária de Charles Bronson, Leone já sedimentou um universo em que os sons naturais têm mais a dizer que qualquer diálogo. O assobio da gaita não é trilha, é memória viva de uma dor nunca nomeada.
A simbiose entre imagem e som, conduzida com destreza por Leone e Ennio Morricone, não serve para pontuar emoções — ela as fabrica. Cada personagem é moldado por um tema musical que antecede sua presença em cena, como se o som o invocasse do fundo de uma tragédia coletiva. Jill, com sua melodia lírica, carrega não uma doçura, mas uma força discreta que desloca a lógica masculina do poder. Frank é anunciado por uma composição distorcida que vibra com frieza, e Harmonica é quase um ser mitológico, definido por uma música que repete o trauma, como se fosse impossível esquecer o que está por vir. Essa arquitetura sonora transcende o acompanhamento e opera como linguagem autônoma, capaz de produzir atmosfera, tensão e até estrutura narrativa. A gaita que reaparece no momento do duelo final não apenas remete ao passado de Harmonica, mas fecha um ciclo de vingança que nunca pretendeu ser heroico — apenas necessário para a travessia.
A sofisticação da mise-en-scène está em como Leone transforma gestos mínimos em acontecimentos épicos. Não se trata de estetizar o faroeste, mas de confrontar sua ossatura com um rigor visual que o reinventa. Os closes intensos, os panoramas monumentais, a coreografia da espera — tudo contribui para ampliar a escala emocional da narrativa. Nesse universo suspenso, os personagens não se deslocam apenas no espaço, mas entre tempos históricos: o que era uma narrativa de conquistas e expansão torna-se um inventário de perdas. Os rostos sulcados pela poeira não são mais promessas de bravura, mas testemunhos de obsolescência. E se ainda há tiroteios, é apenas porque o futuro precisa concluir sua faxina. Leone não celebra os mitos do western, mas os desintegra em câmera lenta, obrigando-os a encarar a própria inutilidade frente à lógica do capital.
No entanto, a força do filme reside na consciência de que nem todo passado precisa ser aniquilado. Ao construir uma narrativa que dramatiza a morte do herói clássico, Leone também esculpe um monumento à memória. “Era uma Vez no Oeste” é uma narrativa de fantasmas: homens que insistem em existir mesmo depois de já terem sido varridos pela história. Jill, ao assumir a construção de uma estação ferroviária sobre os escombros do rancho arrasado, não apenas sobrevive — ela reconfigura os contornos da lenda. Não há redenção, mas há permanência. É ela quem sustenta o olhar para frente, enquanto Harmonica e Cheyenne recuam para o anonimato, deixando como legado não a glória, mas a lembrança de uma dignidade silenciosa. Leone não oferece esperança, mas propõe uma espécie de justiça poética: enquanto houver quem se lembre do som daquela gaita, o Velho Oeste não estará completamente soterrado.
★★★★★★★★★★