Houve um tempo em que monstros clássicos habitavam o imaginário popular como figuras absolutas do medo e do mistério, intocáveis em sua aura lendária. Quando a Universal tentou ressuscitá-los sob o estandarte do “Dark Universe”, o fracasso retumbante de “A Múmia” (2017) revelou não apenas o colapso de um projeto industrialmente superdimensionado, mas também a necessidade de reavaliar o modo como os horrores arquetípicos seriam relidos no século 21. A aposta posterior de Leigh Whannell em “O Homem Invisível” (2020) redefiniu os contornos dessa atualização: um orçamento contido, ausência de estrelas reluzentes e um subtexto potente sobre abuso e silenciamento. Com “Lobisomem”, o cineasta retorna ao que um dia foi promessa abandonada do estúdio para tentar reinventar o licantropo como figura trágica e perturbadora. Mas o que começa como uma tentativa de revisitar mitos sob lentes intimistas esbarra em lacunas narrativas e conflitos de tom que sabotam o potencial de uma abordagem que poderia ter transformado o gênero.
A premissa carrega resquícios do terror psicológico que consagrou o diretor. A floresta do Oregon, cenário inicial da narrativa, não se limita à função paisagística: é a encarnação do desconhecido, da herança familiar mal resolvida, da masculinidade transmitida em silêncio. Ali, Blake, ainda menino, acompanha o pai numa caçada que pressagia mais do que morte animal — ela é rito de iniciação, espelho de um vínculo que, anos depois, retornará em forma de maldição. Quando adulto, Blake é um homem à deriva: escritor sem rumo, pai dedicado e marido em crise que, ao herdar a antiga fazenda paterna, arrasta sua esposa Charlotte e a filha Ginger para o cerne de um território tão físico quanto simbólico. O isolamento não é apenas geográfico: ele é emocional, conjugal, geracional. A criatura que os espreita do lado de fora talvez não seja tão ameaçadora quanto o que se revela do lado de dentro.
Whannell acerta ao construir a tensão inicial com economia e precisão. O uso de enquadramentos limitados, distorções visuais e atmosferas opressivas sinaliza o domínio técnico do diretor, que prefere sugerir a escancarar. A sequência da batida do caminhão e os delírios subsequentes de Blake — contaminado por algo que ultrapassa o biológico — são momentos em que o grotesco e o simbólico se entrelaçam de forma promissora. No entanto, à medida que o enredo avança, o filme revela um vício perigoso: a substituição da complexidade pelo atropelo. Transformações que deveriam carregar peso dramático ocorrem sem transições plausíveis, e personagens como Charlotte, interpretada por uma Julia Garner visivelmente acima do material que recebe, são jogadas de um extremo ao outro do espectro emocional sem sustentação narrativa. O resultado é uma espiral de eventos que, embora tecnicamente eficazes em provocar sustos e desconfortos viscerais, carecem de amarração emocional.
A maior contradição de “Lobisomem” reside justamente em sua ambição temática não cumprida. Ao flertar com questões como a transmissão intergeracional da violência, o colapso da identidade masculina em tempos de fragilidade emocional e os dilemas do cuidado familiar sob ameaça, o filme sugere que poderia funcionar como uma alegoria pungente — quase uma espécie de “Kramer vs. Kramer” atravessado por presas e garras. No entanto, a hesitação em desenvolver essas metáforas com consistência acaba esvaziando seu impacto. Diferente de “O Homem Invisível”, que mergulhava em sua proposta até o fim, aqui as ideias ficam suspensas, como espectros de um roteiro que parece inseguro quanto ao tipo de experiência que deseja proporcionar. Quer ser metáfora social, thriller intimista, espetáculo gore — e, na tentativa de abarcar tudo, entrega uma colagem onde as costuras são visíveis demais.
Ainda assim, seria imprudente descartar o filme como irrelevante. Há algo de fascinante na maneira como ele se recusa a seguir fórmulas fáceis. A escolha por não inflar a narrativa com CGI excessivo, o investimento em tensão atmosférica em detrimento de sustos gratuitos e o esforço por conectar passado e presente com coesão visual são indícios de uma proposta autoral em meio a um gênero frequentemente colonizado por repetição. Mesmo as falhas estruturais — o ritmo desigual, os diálogos mecânicos, a progressão emocional abrupta — não eliminam o fato de que “Lobisomem” tenta, ainda que sem pleno êxito, reposicionar o horror licantópico como campo de reflexão sobre o que é ser pai, marido e homem num mundo em que o controle está sempre prestes a escapar. Não é a criatura que falha: é o humano que não suporta o que ela revela.
Ao final da sessão, o que permanece não é o medo, mas uma inquietação tênue — como se o filme tivesse roçado algo profundo, mas recuado antes de enfrentá-lo de verdade. “Lobisomem” pulsa na fronteira entre o simbólico e o literal, entre o potencial e o descompasso. E talvez o verdadeiro terror esteja justamente aí: na promessa de um filme que poderia ter sido transformador, mas opta por permanecer na penumbra confortável entre a intenção e a execução. A criatura uiva, mas o eco se dissipa rápido demais.
★★★★★★★★★★