Obra-prima de Mel Gibson com 91% de avaliação no Rotten Tomatoes, vencedor de 2 Oscars, na Max Divulgação / Summit Entertainment

Obra-prima de Mel Gibson com 91% de avaliação no Rotten Tomatoes, vencedor de 2 Oscars, na Max

Em “Até o Último Homem”, Mel Gibson retorna à direção com um projeto que, à primeira vista, poderia ser apenas mais uma narrativa de heroísmo em meio ao horror bélico. No entanto, ao centrar sua história em um pacifista que salva vidas em vez de tirá-las, o filme se desloca do terreno comum e se converte em um estudo visceral sobre convicção, fé e resistência moral diante do colapso da razão humana. Em vez de reproduzir a lógica tradicional do combate, Gibson a confronta com um protagonista que se nega a jogar conforme as regras da guerra — e é justamente dessa negação que brota a força subversiva da narrativa.

Desmond T. Doss, vivido por Andrew Garfield em uma performance marcada por contenção e firmeza, é um personagem que opera na contramão das expectativas. Adventista do sétimo dia, ele se alista no Exército norte-americano durante a Segunda Guerra Mundial decidido a não empunhar uma arma. Essa escolha, longe de ser uma excentricidade anacrônica, impõe uma tensão estrutural à narrativa, pois desloca o eixo do heroísmo: Doss não será testado por sua habilidade de matar, mas por sua capacidade de permanecer fiel às próprias convicções em meio ao inferno. O que Gibson constrói, portanto, não é um relato sobre bravura no campo de batalha, mas uma investigação sobre a tenacidade de um homem que se nega a trair a própria consciência — mesmo que isso lhe custe a integridade física, a honra militar ou a própria vida.

A primeira metade do filme parece operar sob o ritmo brando de um drama rural. Entre a infância de Doss marcada por episódios traumáticos e a rigidez moral imposta por um pai atormentado pela memória da Primeira Guerra, o filme traça os contornos de uma personalidade formada entre o rigor religioso e as cicatrizes da violência doméstica. Ainda que em alguns momentos o roteiro flerte com o melodrama — como na construção do romance com a enfermeira Dorothy —, há uma honestidade estrutural nessas cenas que impede que o sentimentalismo desfigure os personagens. Gibson não apressa o arco dramático: ele permite que a fé de Doss, antes mesmo de ser testada nas trincheiras, seja compreendida em suas origens mais íntimas, como um modo de existir no mundo e não como pose moral.

A virada narrativa se impõe com a entrada de Doss no treinamento militar, onde a ideologia bélica e o espírito de corpo se chocam violentamente com sua postura intransigente. Aqui, o filme abandona qualquer zona de conforto. A recusa do protagonista em tocar em armas não é recebida como uma excentricidade religiosa, mas como uma afronta. A direção de Gibson sustenta essa tensão com inteligência: o campo de treinamento torna-se palco de uma microguerra psicológica, onde cada instrutor, cada companheiro de farda, cada humilhação imposta funciona como teste ético. O sargento Howell, interpretado por Vince Vaughn, oferece um contraponto essencial — sua figura, inicialmente caricatural, revela-se uma engrenagem na construção de uma resistência que será tão moral quanto física.

É a partir da chegada dos soldados a Okinawa que o filme assume sua face mais brutal. A câmera de Simon Duggan mergulha nas entranhas do conflito com uma agressividade estética que recusa o distanciamento. Os corpos dilacerados, os gritos abafados, a lama que mistura sangue e pólvora: tudo nesse campo de batalha é projetado para provocar, e não apenas impressionar. É nesse cenário inóspito que Doss encontra sua verdadeira arena. Sem armas, sem retórica, sem escudo — apenas com uma fé inabalável e uma convicção que resiste mesmo quando tudo ao redor colapsa. Enquanto os outros se abrigam ou recuam, ele avança para retirar feridos sob fogo cerrado, e essa escolha solitária é registrada com uma solenidade que beira o sagrado, mas sem perder o pé no real.

A condução de Gibson, conhecida por sua extrema profundidade em obras como “Coração Valente” e “Apocalypto”, atinge aqui uma maturidade surpreendente. A violência, embora explícita, não é gratuita — ela tem função dramática, simbólica e espiritual. O cristianismo de Doss nunca é tratado como doutrina a ser imposta, mas como experiência individual de integridade. O filme não recorre à catequese disfarçada, mas sim à afirmação da liberdade de consciência, mesmo nos contextos mais extremos. Ao invés de pregar, Doss vive aquilo em que acredita. E sua fé, que poderia facilmente ser romantizada ou convertida em ferramenta de manipulação emocional, emerge como linguagem silenciosa, feita de gestos, sacrifícios e recusa à violência.

O elenco, com destaque absoluto para Garfield, contribui para essa estrutura que alterna tensão e comoção com equilíbrio raro. Hugo Weaving, como o pai assombrado pelas lembranças da guerra, impõe uma presença amarga e dolorosa. Teresa Palmer, por sua vez, oferece à narrativa um contraponto sereno, que humaniza ainda mais o percurso do protagonista. Vaughn surpreende ao deslocar sua persona cômica para um registro mais contido, sustentando com precisão o arco de transformação de seu personagem. Mesmo os coadjuvantes, que poderiam se perder em estereótipos, são conduzidos com suficiente densidade para que se tornem peças legítimas no quebra-cabeça emocional do filme.

O que “Até o Último Homem” alcança, no fim das contas, não é apenas uma reconstituição vívida da guerra, mas um questionamento radical sobre o que significa resistir. Doss não busca ser um herói — ele apenas se recusa a ser menos do que acredita ser justo. E é nesse gesto simples, mas devastador, que o filme encontra sua potência. Porque, ao invés de reproduzir a lógica binária dos épicos de guerra — onde matar é prova de coragem —, Gibson propõe uma inversão desconcertante: a maior bravura pode estar em não revidar. Em meio ao campo de batalha, onde tudo grita por violência, a compaixão silenciosa de Doss ressoa como o último grito possível de humanidade.

Filme: Até o Último Homem
Diretor: Mel Gibson
Ano: 2016
Gênero: Biografia/Drama/História
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★