Ao assumir a direção de “Em Chamas”, de “Jogos Vorazes”, Francis Lawrence não herdava apenas a expectativa depositada por uma base de fãs crescente. Diante dele, erguia-se o desafio estrutural típico das sequências intermediárias: sustentar uma narrativa que ainda prepara terreno para o confronto principal, mas que já não pode mais repousar sobre a simplicidade do jogo de sobrevivência. A armadilha usual nesses casos — o esvaziamento narrativo em nome de efeitos de transição — é evitada com uma rara combinação de precisão estética e inteligência dramatúrgica. O filme, ao contrário do que seria previsível, não apenas se justifica como unidade, como também avança a série para um território mais denso e politicamente carregado, no qual as tensões simbólicas adquirem força igual ou maior que os conflitos físicos.
Essa evolução de tom e escala é operada com elegância. O que no primeiro longa se concentrava nas engrenagens de um espetáculo brutal de combate, aqui se amplia para um drama de implicações coletivas, no qual o espetáculo em si se revela ferramenta de controle. A arena permanece, mas sua função já é outra. O próprio conceito de jogo é deslocado: deixa de ser um ritual de violência televisionada para se tornar uma arena ideológica, onde cada gesto, aliança e sacrifício é uma peça na disputa pelo discurso. Nesse movimento, a direção de Lawrence se mostra perspicaz ao tratar a imagem não apenas como forma, mas como conteúdo político — e o filme, por sua vez, ganha densidade sem jamais perder o pulso narrativo.
Boa parte dessa consistência vem de um roteiro que não se contenta em transpor a estrutura do livro, mas que a reconfigura de maneira funcional ao cinema. A narrativa avança com propósito, e a construção da tensão deixa de ser dependente da ação em si, passando a operar nos gestos contidos, nas ameaças veladas, nas hesitações morais. A chegada de figuras como Plutarch Heavensbee, vivido com inquietante neutralidade por Philip Seymour Hoffman, e Finnick Odair, encarnado com surpreendente segurança por Sam Claflin, expande o repertório dramático do filme sem dispersar sua energia. Essas adições não são acessórios: são forças vetoriais que redirecionam o olhar da protagonista e reposicionam o espectador dentro de um jogo cada vez mais complexo.
Jennifer Lawrence, mais uma vez, ancora o filme com uma atuação que capta não apenas o desgaste emocional de Katniss, mas a erosão de sua ingenuidade política. Sua personagem não cresce de forma linear: ela é empurrada por uma espiral de responsabilidades que desafiam seu instinto de autopreservação. Há dor e desorientação no processo, e a atriz comunica essas fraturas com convicção. O mesmo, porém, não se pode dizer da relação entre Katniss e Peeta. O vínculo que, no romance, ganha corpo aos poucos como uma espécie de abrigo silencioso contra o caos, aqui se esvazia diante de uma construção dramática que privilegia a urgência dos eventos. Falta densidade ao casal, e a química entre Lawrence e Josh Hutcherson nunca ultrapassa o protocolo. A fragilidade dessa relação não se manifesta como ambivalência deliberada, mas como desatenção narrativa — uma ausência de implicação emocional que empobrece o que deveria ser um dos eixos afetivos mais importantes da trama. Gale, por outro lado, surge como figura quase estática: seu crescimento não decorre de desenvolvimento interno, mas da conveniência de seu entorno.
Curiosamente, são os personagens adultos — muitas vezes negligenciados na adaptação anterior — que adquirem contornos mais vívidos. Donald Sutherland, como o Presidente Snow, constrói uma presença que não grita, mas envenena. Ele domina cada cena com um tipo de ameaça que não se impõe pela força, mas pela certeza de que ela está sempre à espreita. Seu Snow é menos um arquétipo de tirano e mais a expressão encarnada de uma ordem que oprime não com fúria, mas com cálculo. Woody Harrelson, por sua vez, oferece uma leitura mais interiorizada de Haymitch: sua atuação projeta não apenas ironia ou desencanto, mas uma exaustão que torna sua lucidez ainda mais trágica. Haymitch não é apenas mentor — é testemunha silenciosa da engrenagem que transforma jovens em mártires e corpos em bandeiras. Nesse ponto, o filme escava o subsolo da própria mitologia que sustenta a série e revela seus alicerces mais sombrios.
Visualmente, “Em Chamas” se afasta da estilização pontual para construir um mundo mais coeso e simbólico. A estética do Capitólio, com sua arquitetura asséptica e seus figurinos absurdamente opulentos, reforça a distância entre aparência e realidade. A nova arena — com seus ciclos naturais manipulados e suas armadilhas calculadas — é a metáfora perfeita de um sistema que estetiza a violência enquanto reconfigura seus alvos. A fotografia e a direção de arte trabalham em sintonia para produzir um espaço que não é apenas letal, mas deformado em sua própria lógica: tudo ali se pretende natural, mas cada folha, cada neblina, cada animal é parte de uma performance de controle. O jogo, aqui, não é uma simulação da guerra — é a própria guerra sob outra forma.
Se há previsibilidade em alguns desdobramentos, ela não compromete a experiência. Pelo contrário: o prazer do espectador está justamente na consciência de que tudo segue um desenho maior, no qual as peças se movem com coerência e estratégia. O roteiro respeita o olhar atento, recompensa quem acompanha os detalhes e constrói um desfecho que, mesmo não sendo abrupto, reverbera. Ao final, o que se percebe é a substituição do suspense pela urgência. Já não se trata de escapar da arena, mas de romper com ela — e com tudo o que ela representa.
“Em Chamas” talvez não alcance todas as nuances emocionais que propõe, mas avança a série em termos simbólicos, narrativos e políticos. O filme entende que maturidade, aqui, não é sinônimo de cinismo, mas de complexidade. A transição de um jogo de morte para uma guerra de narrativas é feita com clareza e ambição. E quando a tela escurece, o espectador não apenas aguarda o próximo capítulo: ele compreende que a história, enfim, começou de verdade.
★★★★★★★★★★