Há diretores cuja assinatura não depende apenas de um estilo visual, mas de um pacto íntimo com a linguagem — e não apenas a da câmera. Pedro Almodóvar é um desses casos raros. Seu cinema sempre se articulou a partir de uma gramática afetiva que mistura excesso e silêncio, melodrama e autoironia, construindo atmosferas em que o improvável adquire densidade emocional. Em “O Quarto ao Lado”, sua primeira incursão em um longa-metragem falado em inglês, essa equação vacila. O resultado é uma obra em que as superfícies continuam brilhando, mas o que pulsa por dentro hesita — como se o idioma novo não tivesse apenas deslocado as palavras, mas desorganizado a respiração do autor.
Tudo parece estar no lugar: os ambientes cuidadosamente estilizados, as cores saturadas que se chocam com os humores das personagens, a composição milimétrica do quadro. Mas falta o ar que antes atravessava essas imagens, a corrente emocional subterrânea que fazia a encenação parecer menos encenada. Há uma espécie de contenção incômoda, como se o próprio Almodóvar, ao mudar de língua, tivesse se tornado inquilino de uma casa onde antes era proprietário. Sua habitual fluência narrativa — aquela capacidade de nos conduzir sem esforço por abismos sentimentais — agora soa interrompida por uma cadência que não lhe pertence.
O centro dramático do filme gira em torno de Martha, uma fotógrafa marcada por uma doença terminal, e Ingrid, uma escritora dilacerada entre o dever e o arrependimento. Em teoria, a relação entre as duas deveria ser o coração pulsante da narrativa, feita de gestos contidos, silêncios significativos e fragilidades entrelaçadas. No entanto, o que se vê é um excesso de palavras tentando traduzir aquilo que antes Almodóvar preferia insinuar. O que era lacuna tornou-se explicação; o que era sugestão converteu-se em monólogo. A sensibilidade do diretor, tão acostumada ao subtexto, parece aqui sufocada por uma literalidade que contraria sua intuição estética.
Essa inflexão reverbera no desempenho do elenco, especialmente no caso de Tilda Swinton. Poucos intérpretes contemporâneos são tão eficazes no uso do não dito quanto ela. Em filmes como “Memória” e “A Filha Eterna”, Swinton faz do silêncio uma forma de presença. Aqui, no entanto, seu talento parece engessado por falas que não lhe oferecem espaço para respirar. O texto, por mais meticulosamente escrito, a afasta da carne da personagem. Julianne Moore, por sua vez, compõe Ingrid com melancolia contida e uma doçura soterrada pela culpa, mas nem mesmo sua entrega consegue atravessar os limites de um roteiro que insiste em dizer o que já está evidente nos olhos. A química entre as duas atrizes existe, mas é sabotada pela estrutura verbal da narrativa. Elas se tocam, mas não se atravessam.
Há, ainda assim, uma elegância formal que resiste. A ambientação principal — uma casa isolada entre árvores e lembranças — funciona como palco simbólico para o esgarçamento emocional das personagens. Cada cômodo guarda uma tensão, cada objeto parece carregar um aceno à morte ou à memória. Mas, ao contrário dos espaços almodovarianos habituais, que respiram junto com os corpos que os habitam, aqui o cenário se impõe como um enfeite mais do que como extensão da psique. O uso do vermelho — outrora orgânico, quase pulsante — transforma-se em ornamento previsível, sinalizando emoções em vez de extrair delas uma nova camada de leitura. A casa não conversa com suas moradoras; apenas as abriga.
É possível identificar lampejos do cineasta de outrora em momentos breves, como na decisão de Martha de encarar a morte como um gesto de autonomia silenciosa, deslocando-se para uma espécie de refúgio onde o tempo parece suspenso. Há uma melancolia sofisticada nesses instantes, uma dignidade soturna que escapa à tentação do sentimentalismo. Mas até mesmo essas passagens carecem do improviso que definia a escrita emocional do diretor — aquela sensação de que a cena poderia escapar a qualquer momento do controle, revelando o inesperado. Aqui, tudo já está resolvido antes que aconteça. O roteiro aperta cada ponto de tensão com tal precisão que não há risco, e sem risco não há vida.
O filme flerta com o fantasma de “Persona”, de Ingmar Bergman — e não apenas na estrutura binária de duas mulheres em espelhos cruzados. A busca por uma comunhão que escapa à linguagem, a tentativa de habitar o outro como forma de compreender a si mesma, tudo isso está no subsolo da narrativa. Mas onde Bergman se permitia o enigma, Almodóvar parece compelido a decifrar. A densidade simbólica cede à literalidade, e o confronto de almas se transforma em duelo de frases.
Há algo de comovente na tentativa de Almodóvar de reinventar sua voz em outro idioma. Mas o que se impõe, ao fim, é um retrato agridoce de deslocamento criativo: um artista que, ao mudar a língua, perdeu momentaneamente o compasso de sua melodia interior. “O Quarto ao Lado” não é um fracasso, mas um gesto hesitante de tradução — e toda tradução, por mais cuidadosa, carrega perdas. No caso de Almodóvar, a perda foi justamente aquilo que sempre fez seu cinema ser mais que estilo: a capacidade de transformar o melodrama em verdade íntima, e a exuberância em confissão. Aqui, resta apenas a moldura — bela, mas sem o retrato que a justificava.
★★★★★★★★★★