Há filmes que não pretendem narrar um evento, mas colocá-lo diante do espectador como se dissesse: veja com seus próprios olhos, sem filtros, sem atalhos. “iHostage” se alinha a essa proposta com rara integridade. Inspirado em um sequestro real ocorrido em Amsterdã, em 2022, o longa não disfarça sua origem factual nem tenta revesti-la de ficção palatável. Ao contrário, aposta em uma crueza meticulosa, que se sustenta menos nos artifícios tradicionais do suspense e mais na tensão que brota do inusitado cotidiano que se rompe. O horror aqui não é amplificado — é revelado em sua forma mais nua, como se a câmera optasse por não interpretar, mas apenas expor o instante de ruptura entre o previsível e o abismo.
A escolha formal mais significativa talvez esteja justamente na contenção. O filme não força tensão com cortes acelerados ou imagens saturadas de impacto visual; prefere observá-la surgir em tempo real, com parcimônia. Ainda que certos momentos flertem com o estético — em especial no uso reiterado da trilha sonora, que por vezes suaviza o que deveria ser indigesto —, há um esforço deliberado em não tornar a violência consumível. O resultado é uma narrativa que, mesmo estilizada pontualmente, se ancora numa ética de encenação: respeitar o acontecimento, não o explorar.
Essa sobriedade atravessa também o modo como os personagens são articulados. O sequestrador Abdel Rahman Akkad, longe de ser retratado como vilão funcional ou figura redentora, ganha contornos mais incômodos: é alguém que sangra, hesita, e cuja humanidade permanece como um dado incômodo no centro do colapso. O roteiro não cede à tentação da caricatura, tampouco o santifica. Opta, com coragem, por deixá-lo em aberto — e é justamente essa suspensão de julgamento que transforma os diálogos em campos de tensão ética. As conversas entre Akkad e seu refém não têm força porque algo extraordinário está sendo dito, mas porque o banal é atravessado por urgência e medo. Cada silêncio entre frases não é um intervalo: é uma ferida.
Ao evitar maniqueísmos, o filme cria espaço para que o espectador se confronte com dilemas que não admitem síntese. O mérito maior do roteiro é recusar explicações confortáveis. Akkad não é reduzido a um diagnóstico, tampouco elevado a símbolo. Ele apenas está ali — e isso basta para incomodar. Não há flashbacks redentores, nem discursos justificatórios. Há presença, pura e complexa. Essa recusa em contextualizar demais talvez frustre quem busca causas fáceis ou narrativas fechadas, mas é precisamente o que confere à obra sua densidade: a noção de que a compreensão profunda raramente vem embalada em discursos.
Nem tudo, contudo, acompanha esse nível de sofisticação. Há tropeços evidentes, sobretudo nos papéis secundários, cuja rigidez atua contra o clima de urgência que se pretende instaurar. Certos diálogos soam automatizados, como se lidos de um manual de procedimentos dramáticos. Soma-se a isso a trilha sonora que, ao tentar preencher os vazios com emoção artificial, compromete a integridade de cenas que pediam apenas silêncio. Esses deslizes não desmontam a construção, mas evidenciam uma hesitação da direção em confiar inteiramente na força do não dito.
Ainda assim, “iHostage” mantém-se como um exemplo raro de narrativa baseada em eventos reais que não capitula ao melodrama nem à espetacularização. A tensão aqui é construída na borda do insuportável, não pela via da exibição, mas pela intimidade com o colapso. A escolha de manter a câmera próxima, mas não invasiva, cria uma sensação inquietante de testemunho: estamos diante, não acima, dos acontecimentos. E essa postura narrativa — de quem observa sem manipular — é talvez o gesto mais ético que um filme baseado em trauma pode oferecer.
Há uma inteligência formal que atravessa toda a construção: o filme sabe onde parar. Em vez de buscar a catarse tradicional — a libertação emocional que tranquiliza — ele aposta na permanência da inquietação. Quando os créditos aparecem, não se tem a sensação de encerramento, mas de suspensão. O espectador não recebe respostas, apenas caminha com novas perguntas. E é nesse vazio cheio de ecos que “iHostage” encontra sua potência.
A obra (sem recorrer a termos genéricos) não quer ser moralista, nem oferecer lições. Quer apenas — e isso é muito — sustentar o desconforto de olhar para aquilo que não se deixa simplificar. Se há algo que a narrativa alcança com maestria, é essa rarefeita zona entre a empatia e o horror, onde a compreensão se torna um gesto de risco. O filme se atreve a perguntar: até onde vai o humano, quando o mundo já não responde? E o faz sem enfeites, sem atalhos, apenas com a crueza de quem compreende que, por vezes, o que mais dói é o que não se consegue nomear.
★★★★★★★★★★