Srinivasa Ramanujan não apenas desestabilizou o universo da matemática com suas fórmulas enigmáticas: ele também desafiou, silenciosamente, toda a arquitetura de poder que sustenta o conhecimento legitimado pelo Ocidente. Sua história, trazida à ficção em “O Homem que Viu o Infinito”, não se limita ao percurso improvável de um autodidata indiano em Cambridge, mas revela com precisão desconcertante o incômodo institucional diante de tudo que escapa ao modelo eurocêntrico de racionalidade. O filme propõe mais do que a reconstituição biográfica de um prodígio: é, acima de tudo, um confronto entre cosmovisões inconciliáveis, em que lógica e transcendência se engalfinham não em busca de um vencedor, mas na tentativa de coexistência.
Ramanujan chega à Inglaterra como um paradoxo ambulante. Carrega nas mãos fórmulas que ninguém mais é capaz de conceber, mas não domina o aparato metodológico exigido para validá-las. Essa ausência de “provas” – entendida como requisito inegociável pelos padrões acadêmicos britânicos – o torna, simultaneamente, objeto de fascínio e de resistência. O centro desse impasse é G.H. Hardy, matemático respeitado, ateu militante e defensor da razão como única via legítima do saber. A dinâmica entre os dois, construída com camadas de tensão intelectual e afetiva, concentra o verdadeiro drama da narrativa. Hardy, por mais que admire o brilho de seu pupilo, não consegue se livrar da exigência cartesiana de demonstrabilidade. Já Ramanujan opera a partir de outra matriz: uma confiança quase mística na origem divina de seus raciocínios, que para ele dispensariam comprovação.
Essa incompatibilidade de fundamentos — entre a fé silenciosa de um e o ceticismo argumentativo do outro — transcende o ambiente da pesquisa científica. Ela espelha a fratura cultural mais profunda do colonialismo: a hierarquia não apenas entre povos, mas entre formas de interpretar o mundo. Ao longo do filme, o que está em jogo não é apenas se Ramanujan terá ou não seus teoremas publicados. A verdadeira questão é se um saber gestado fora das estruturas formais será reconhecido como legítimo. E é nesse ponto que o filme se diferencia de outras narrativas científicas convencionais. Não há aqui a habitual glorificação do herói que se adapta. Ramanujan não se curva. Ele persiste – e resiste.
Diferentemente de produções como “A Teoria de Tudo” ou “O Jogo da Imitação”, que tendem a enquadrar seus protagonistas em arcos dramáticos previsíveis de ascensão e reconhecimento, “O Homem que Viu o Infinito” prefere o incômodo à celebração. Em vez de suavizar as arestas, a obra investe na ambiguidade dos personagens: Hardy, por exemplo, é ao mesmo tempo mentor e guardião de uma ortodoxia que sufoca o novo; Ramanujan é tão devoto à sua intuição que por vezes parece inacessível, até mesmo arrogante em sua fé. Não há maniqueísmo. O que existe é um campo de atrito, onde a genialidade não é redentora, mas solitária — e, em alguns momentos, devastadora.
Por trás das equações que desafiam as convenções do pensamento ocidental, desenha-se uma segunda camada narrativa: a do exílio. Ramanujan, deslocado em todos os sentidos, enfrenta o isolamento social e o preconceito racial de uma Cambridge que o tolera apenas enquanto exceção útil. Sua saúde definha, sua correspondência com a esposa é sabotada, e sua alimentação se torna mais um campo de batalha entre identidade e adaptação. O filme encontra força justamente nessas lacunas emocionais — na dor abafada, nas ausências prolongadas, nas promessas diluídas pela distância. O conflito entre razão e fé ganha, assim, um contraponto humano que o torna ainda mais pungente: trata-se, afinal, de um homem dividido entre o dom que o consome e os vínculos que o mundo moderno não permite preservar.
Dev Patel, contido e intenso, constrói um Ramanujan que nunca se rende à caricatura. Sua performance evita os gestos fáceis do gênio excêntrico e aposta na interiorização de uma angústia que é tanto pessoal quanto histórica. Jeremy Irons, como Hardy, oferece a contraparte perfeita: um cético que, aos poucos, reconhece que o universo talvez seja maior do que sua lógica permite conceber. A relação entre os dois é de constante fricção, mas também de um respeito que, por não ser imediato, soa mais autêntico. É nesse espaço ambíguo que o filme encontra sua tensão mais duradoura — e mais interessante.
Apesar de limitar a exposição do impacto técnico das ideias de Ramanujan, a narrativa compensa ao enfatizar seu legado simbólico: a intuição como força legítima no campo do pensamento. Décadas após sua morte precoce, muitos de seus teoremas continuam sendo desvendados por algoritmos modernos, como se sua mente tivesse operado num tempo ainda por ser alcançado. O caso dos buracos negros, cuja antecipação por ele só foi confirmada pela ciência mais de oitenta anos depois, serve como lembrança brutal de que o conhecimento, por vezes, precede a linguagem necessária para validá-lo.
Chamar de “intuição” aquilo que Ramanujan fazia pode soar redutor. Talvez fosse um tipo de visão que ainda não sabemos nomear — um pressentimento que não cabe nos moldes do empirismo, mas que, mesmo assim, transforma o mundo. O filme termina, então, não com a consagração tradicional do gênio, mas com a permanência de uma dúvida: e se tudo aquilo que sabemos for apenas uma parte ínfima do que ainda nos escapa?
★★★★★★★★★★