Um livro premiado com o Pulitzer. Um filme que ninguém esquece. E agora, um pesadelo disponível no Prime Video Divulgação / 2929 Productions

Um livro premiado com o Pulitzer. Um filme que ninguém esquece. E agora, um pesadelo disponível no Prime Video

O cinema, quando se afasta da sombra reverente da literatura e a encara como provocação e não como modelo, atinge sua potência mais singular. Não se trata de ilustrar palavras, mas de reconfigurá-las em matéria sensorial, redimensionando a experiência estética. Em “A Estrada”, John Hillcoat não reverencia Cormac McCarthy: ele o enfrenta. Ignora a genealogia da narrativa para mergulhar diretamente na atmosfera tóxica de um mundo em colapso — um mundo onde a ruína não é só geográfica, mas espiritual. A tradução visual da desesperança proposta por Hillcoat não serve ao texto de 2006 como espelho, e sim como contraponto tenso e silencioso. A familiaridade com o livro é irrelevante: a obra fílmica se sustenta por sua própria ossatura espectral.

Não há explicações. Não há causas, tampouco promessas. A tragédia que consumiu a Terra permanece fora de quadro, e esse silenciamento é talvez o gesto mais eloquente do roteiro de Joe Penhall. Nesse vazio factual, cresce uma narrativa onde a linguagem é reduzida à função vital: comunicar perigo, preservar laços, suportar a ausência. O Homem e O Garoto — figuras sem nome, como quem já não pertence a história alguma — atravessam um território pulverizado pelo desespero. Não buscam redenção; buscam apenas seguir. A estética do filme não investe em choques visuais gratuitos, mas em uma devastação meticulosa, enraizada na monotonia cinzenta, nos cadáveres esquecidos nas calçadas, no eco do que não volta. A cada ruína encontrada, uma ética mínima resiste: a recusa em devorar o outro.

A dinâmica entre pai e filho é mais do que afeto: é o último elo de humanidade num mundo pós-humano. Viggo Mortensen não encarna um herói, mas um sobrevivente em decomposição interna. Carrega nas costas uma criança e uma promessa, ambas dilaceradas pela dúvida. Sua atuação pulsa na margem entre a brutalidade e a ternura, entre a violência necessária e o afeto resiliente. Em seu olhar, o medo da perda é inseparável do peso da responsabilidade. O Garoto, vivido com precisão por Kodi Smit-McPhee, não se apequena diante da barbárie: observa, hesita, mas não cede. Sua lucidez precoce é talvez o gesto mais subversivo do roteiro — um realismo que não se esconde atrás de utopias.

A presença de Charlize Theron, embora breve, insere um ruído emocional importante. Sua personagem não representa apenas o passado, mas a impossibilidade de sustentar a esperança sem pagar um preço insuportável. Os flashbacks que a envolvem não aquecem a narrativa — ao contrário, revelam a implosão do afeto diante do horror. Javier Aguirresarobe, diretor de fotografia, compreende que a verdadeira beleza do filme está em sua recusa ao esteticismo fácil. Sua câmera não quer embelezar a destruição, mas expor sua banalidade, como se cada plano fosse contaminado por uma poeira ética.

“A Estrada” se instala nesse intervalo entre a extinção e o impulso de permanecer. McCarthy não concedia respostas ideológicas; Hillcoat tampouco sugere soluções narrativas. O filme abraça a aridez como condição existencial, e ao fazê-lo, torna-se paradoxalmente vital. Hillcoat está prestes a adaptar “Meridiano de Sangue”, e o fato de que esta escolha não soe absurda diz muito sobre o espaço que ele conquistou entre a literatura impiedosa de McCarthy e o cinema como campo de reinvenção. “A Estrada” não solicita empatia, mas coragem para observar. E, talvez, para continuar andando.

Filme: A Estrada
Diretor: John Hillcoat
Ano: 2009
Gênero: Aventura/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★