Com 13 indicações ao Oscar, o filme mais esperado do ano finalmente chegou ao Prime Video — e não decepciona Divulgação / Pathe Films

Com 13 indicações ao Oscar, o filme mais esperado do ano finalmente chegou ao Prime Video — e não decepciona

Num tempo em que o senso de ironia parece ter sido confiscado por discursos doutrinários e vigilâncias morais travestidas de crítica, “Emilia Pérez” propõe um jogo perigosamente ambíguo. Jacques Audiard assume, com vigor e insolência, a tarefa de encenar uma história que nasce da colisão entre brutalidade e desejo de transcendência. Trata-se de um narcotraficante decidindo abandonar seu império sangrento ao empreender uma transfiguração radical — não apenas corporal, mas existencial — e tornar-se mulher. Essa escolha, que poderia facilmente resvalar na caricatura ou no panfleto, se converte em um artefato narrativo que explora as tensões entre redenção e encenação, entre verdade emocional e artificialidade estética.

Audiard concebe seu filme como um pastiche, mas não no sentido preguiçoso de quem apenas imita referências com verniz pós-moderno. A colcha de retalhos aqui é composta com precisão simbólica, com gestos que colidem deliberadamente com o bom gosto e abraçam o kitsch como estratégia de exposição do grotesco que atravessa tanto a política quanto a cultura da espetacularização da dor. Em lugar de buscar autenticidade geográfica ou fidelidade documental ao México, ele ergue um cenário que mais se assemelha a uma maquete moral barroca, repleta de códigos visuais que se sabem construídos e, ainda assim, não perdem em intensidade. É aí que reside a coragem formal de Audiard: em assumir o artifício como via de acesso a uma dimensão mais radical da verdade dramática.

O ponto de partida — extraído de um trecho da obra “Écoute”, de Boris Razon — oferece o impulso para que o cineasta vá muito além da literalidade. Com inserções aparentemente marginais, como uma televisão ao fundo transmitindo protestos contra feminicídios ou páginas de jornais sensacionalistas que sussurram tragédias ignoradas, Audiard sugere que o horror cotidiano não precisa gritar para ser entendido. A metamorfose de Manitas Del Monte em Emilia Pérez é coreografada com disciplina simbólica: cada decisão, cada passo rumo à transformação, carrega a angústia de quem não pretende apagar um passado monstruoso, mas reconfigurar seu destino diante de um abismo moral irreversível.

É neste ponto que o filme joga luz sobre uma das questões mais espinhosas da atualidade: o limite entre o reconhecimento e a vitimização oportunista. A personagem-título, agora uma figura pública empenhada em reparar a violência que antes perpetrou, não pede perdão com lágrimas ou promessas. Ela age. E é essa ação — silenciosa, concreta, incompleta — que redimensiona a noção de justiça. O filme não absolve seu protagonista travestido de salvadora, tampouco o condena. Apenas o insere num dilema que recusa soluções apaziguadoras, expondo a indigência moral de um mundo que prefere rótulos confortáveis a narrativas complexas.

Mas é fora da tela que o debate se intensifica. Karla Sofía Gascón, atriz que incorpora Emilia Pérez com inquietante solenidade, acabou arrastando o longa para um pântano de acusações digitais que, curiosamente, ecoam os temas do próprio enredo. Ao alegar perseguição xenofóbica, racista e gordofóbica, Gascón dramatizou nas redes uma performance identitária que muitos tomaram como dissonante do ethos de sua personagem. Haveria mais coerência — e talvez mais potência política — em reconhecer deslizes e reposicionar-se, como faz Emilia, do que em reagir às críticas com o vitimismo ressentido que não suporta ser interpelado.

“Emilia Pérez” lança, portanto, uma interrogação perturbadora: o que de fato redime um sujeito cuja história foi erguida sobre os escombros da destruição alheia? Será suficiente que alguém se refaça em sua própria imagem idealizada para ser digno de clemência? Jacques Audiard não oferece respostas, mas orquestra uma sinfonia visual que aponta para a falência das categorias rígidas que dominam o discurso público. Seu filme, com todos os seus excessos calculados, retira o espectador da zona de conforto e exige que ele confronte o que talvez preferisse ignorar: que até a transformação mais autêntica pode carregar o germe da farsa — e que toda farsa, em algum nível, é reveladora.

Nesse embate entre denúncia, desejo e disfarce, Audiard e Gascón entregam algo raro: uma provocação que resiste à digestão fácil. O filme não busca consenso — e é exatamente por isso que incomoda, ilumina e permanece.

Filme: Emilia Pérez
Diretor: Jacques Audiard
Ano: 2024
Gênero: Crime/Musical
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★