Toda ficção especulativa tem seu limiar de credibilidade, mas poucos filmes se atrevem a testar esse limite com a leveza e a obstinação de “Entre Montanhas”. Ao fundir um romance inusitado com o imaginário grotesco dos thrillers de ação e horror, o longa de Scott Derrickson desafia a lógica interna das narrativas convencionais e propõe algo mais anárquico: uma celebração do absurdo como método. O roteiro de Zach Dean age como um alquimista caótico que mistura referências díspares — de “Sniper Americano” a “Stranger Things”, passando por “Simplesmente Amor” e “Aliens — O Resgate” — e propõe um pacto informal com o espectador: aceite a incoerência estética em nome da experiência. E, contra todas as expectativas, o pacto se cumpre. Não porque o filme faça sentido, mas porque ele tem consciência de que não precisa fazer.
No centro dessa experiência está uma dupla construída à imagem e contradição do próprio filme. Levi, interpretado com estoica contenção por Miles Teller, é um ex-fuzileiro consumido por um niilismo discreto, deslocado em um mundo onde a violência se transformou em rotina. Do outro lado da fenda — literal e simbólica — está Drasa, encarnada por Anya Taylor-Joy com uma vitalidade que beira o lúdico. Ambos foram designados para vigiar, por um ano inteiro, uma garganta geológica envolta em névoa e mitologias mal explicadas. Isolados e proibidos de interagir, eles compartilham um território que exige mais do que pontaria: requer resistência emocional diante do inexplicável. É nesse silêncio imposto que o flerte se infiltra, de forma quase clandestina, dando início a uma conexão que não ignora o perigo, mas encontra nele uma via torta para o afeto.
O que começa como uma vigilância militar se desdobra num experimento relacional entre opostos que se completam pela própria dissonância. Drasa, com seu humor sarcástico e espírito provocador, explode a rigidez de Levi, criando uma dinâmica que não depende de diálogos rebuscados, mas de pequenos gestos — um solo de bateria, uma partida de xadrez à distância, uma música tocada em volume ofensivo. O espectador assiste, intrigado, à inversão de expectativas: a missão, que prometia uma escalada em direção ao horror cósmico, converte-se em terreno fértil para a construção de um vínculo tão improvável quanto genuíno. Ao desviar do embate clássico entre bem e mal, o filme posiciona seus protagonistas em uma zona cinzenta, onde monstros grotescos coexistem com bilhetes poéticos e tiroteios são interrompidos por olhares carregados de desejo. O surreal aqui não é a garganta — é a possibilidade de ternura em meio ao inferno.
Mas nem mesmo a convicção estilística resiste ilesa às tentações da explicação. Ao tentar racionalizar o mistério do abismo e fornecer uma origem para os chamados Hollow Men, o roteiro renuncia à ambiguidade que tanto prometia. O que poderia ser uma metáfora sobre o vazio existencial ou um símbolo do desconhecido torna-se um detalhe logístico, burocratizado por teorias e conveniências narrativas. A ficção especulativa, que sobrevive do que não se pode nomear, sofre quando a lógica invade o terreno do absurdo. Ao escancarar as engrenagens por trás do terror, “Entre Montanhas” desarma sua própria tensão, transformando o inominável em ruído e privando o espectador de um desfecho à altura do que o filme sugeria nos primeiros dois terços.
Ainda assim, há momentos em que a produção escapa dessa armadilha explicativa e se entrega ao delírio com uma liberdade estética difícil de encontrar no cinema de gênero contemporâneo. Sequências que lembram os melhores excessos de Sam Raimi — com jipes desgovernados, aranhas de crânios e minas terrestres disparando ao som de sintetizadores pulsantes — reafirmam que o filme, quando não tenta se justificar, encontra sua identidade. A trilha de Trent Reznor e Atticus Ross funciona como um motor emocional que eleva cada cena, fazendo com que até os diálogos mais implausíveis adquiram certa legitimidade emocional. É como se o filme soubesse que, se não pode ser verossímil, deve ao menos ser inesquecível. E nisso, cumpre seu papel com notável competência.
O que distingue “Entre Montanhas” não é a sofisticação do enredo nem a originalidade da premissa, mas a coragem de fundir sensibilidades inconciliáveis em uma narrativa que desafia o espectador a sentir onde antes se esperava apenas reagir. Ao conjugar ação desregrada, romance contemplativo e horror estilizado em um mesmo espaço fílmico, Derrickson propõe um filme que não se encaixa em gênero algum — e talvez justamente por isso mereça ser visto. Não se trata de um acerto pleno, mas de uma tentativa vibrante de escapar do cinismo que engessa a produção industrial. Em vez de funcionar como mais uma fórmula pronta, “Entre Montanhas” se apresenta como um risco calculado, disposto a ser estranho, exagerado e até brega — desde que, no processo, alcance algo minimamente humano. E é justamente nesse paradoxo — entre o delírio narrativo e a intimidade emocional — que o filme encontra sua razão de existir.
★★★★★★★★★★