Dói dizer, mas é preciso: parte da intelectualidade brasileira ainda não saiu da adolescência do pensamento. Reage por impulsos, age por afetações, julga por reflexos. Diante da morte de Mario Vargas Llosa, em vez de silêncio reverente ou análise consequente, pipocaram bravatas morais, linchamentos caricatos e aquele ressentimento típico dos que confundem posição ideológica com leitura literária. Um escritor morre, um Nobel, um clássico vivo, um herdeiro direto de Flaubert, de Faulkner, de Balzac, e a primeira reação é um tribunal apressado, de manchete e cancelamento. O enterro do homem foi transformado num desfile de certezas histéricas. E o que se viu, em muitos círculos ditos progressistas, não foi luto, nem leitura, mas um surto de intolerância travestido de crítica.
Não se trata de santificar Vargas Llosa. Ele próprio se encarregou de tornar difícil qualquer beatificação. Flertou com a direita liberal, apoiou candidatos questionáveis, disse absurdos em colunas de jornal. Mas nenhuma dessas atitudes o desautoriza como autor. E mais: nenhuma dessas atitudes justifica a infantilidade apaixonada da crítica de quem se recusa a separar a obra do autor, o pensamento da ficção, a criação do panfleto. Harold Bloom, que jamais foi cúmplice da mediocridade, já avisava em “O Cânone Ocidental”: “a literatura não é democracia, nem pedagogia, nem sociologia. É um campo de forças espirituais que exige julgamento estético e vigor intelectual”. E Bloom era severo — como só os gigantes são —com quem desejava politizar o gosto ou educar moralmente os romances. Se estivesse hoje nas redes brasileiras, seria cancelado com gosto. Teria contra ele os mesmos que agora cospem em Llosa, por não suportarem a exigência de pensar sem muletas.
A literatura de verdade, não a de hashtags, não se curva a ideologias. Llosa sabia disso. E mesmo nos romances mais alinhados com suas convicções políticas, como “O Peixe na Água” ou “O Herói Discreto”, há sempre zonas de ambiguidade, personagens que escapam ao panfleto, histórias que complicam mais do que explicam. É isso que o diferencia do realista neoliberal de caricatura. Como ensina Aristóteles, na “Poética”, “o verossímil é mais importante que o verdadeiro”, e é nele que o romancista opera: na arte de construir mundos possíveis que iluminam a condição humana. Quem julga Llosa apenas por suas opiniões editoriais ignora que há em “Conversa na Catedral”, por exemplo, um dos retratos mais lancinantes da decadência política latino-americana. O que importa não é a agenda do autor, mas a densidade da obra.

Num país onde ainda se confunde opinião com pensamento e militância com leitura, Llosa vira um bode expiatório ideal: latino, brilhante, premiado e, pior, com posições que ferem a ortodoxia da esquerda de Facebook e do Instagram. Transformar sua obra em anátema é um sintoma, não uma crítica. É a prova de que ainda somos adolescentes diante da tradição. E o que se exige da inteligência adulta não é aplauso nem apedrejamento, mas exame. Llosa errou, como erram todos os homens livres. Mas escreveu como poucos. E isso, para quem ama a literatura mais do que o engajamento tribal, basta. Kant, na “Crítica do Juízo”, fala que “o juízo estético é livre, não preso ao conceito, mas ao sentimento comum do belo”. E o que Llosa nos deu, com “A Casa Verde”, com “Tia Júlia e o Escrevinhador”, com “A Guerra do Fim do Mundo”, foi beleza. Uma beleza que inquieta. E, por isso mesmo, permanece.
Trajetória de Vargas Llosa: do engajamento à virada liberal
Não sou, e nunca fui, um leitor contumaz de Mario Vargas Llosa. Li três livros — “A Guerra do Fim do Mundo”, “Tia Júlia e o Escrevinhador” e “Conversa na Catedral” (genial, vale a obra completa de 99% dos escritores de esquerda), por indicação precisa e generosa de uma professora peruana com quem trabalhei. Outras obras dele conheci de palestras e de eventos de literatura hispano-americana, de atividades com os alunos do curso de Letras-Espanhol, que precisavam ler esses livros, e como eu coordenava a literatura do curso, precisava dar “ok” ao material, e por isso tive muito contato. Minha amiga peruana não era professora de literatura. Ela lecionava Espanhol no curso de Letras onde eu lecionava Teoria da Literatura e Crítica Literária, além de coordenar todas as disciplinas de Literatura do curso em São Paulo. Para ela, Llosa era uma síntese do barroco e da razão na literatura hispano-americana; não sei se concordo com ela hoje. Fiz o que se deve fazer com os grandes: li com atenção, com ceticismo, com entrega. Convivi com estudiosos apaixonados por sua obra, e, com exceção de raros círculos de Lima ou Madri que visitavam constantemente a USP, nunca encontrei críticas tão emocionais, impermeáveis à complexidade, quanto as que brotaram aqui, nos salões inflamados da esquerda brasileira universitária ou tardiamente universitária, contaminando até mesmo homens de talento, inteligência e produção de qualidade inegáveis.
A trajetória de Llosa é a de quem ousou mudar. Começou na esquerda, como Ferreira Gullar, Paulo Francis e tantos homens de talento. E era da boa esquerda, essa que não existe e nunca existiu em massa no Brasil: a que lia Sartre, combatia ditaduras, desejava justiça social sem sacrificar o estilo. “A Cidade e os Cachorros”, de 1963, é tida pelos especialistas como um soco na alma militar latino-americana. Vi uma conferência a respeito desse livro na FGV, no Rio, e tive fome dele. “Conversa na Catedral”, de 1969, é uma meditação brutal sobre o desencanto e a impotência diante da corrupção política. Tudo literatura da mais alta temperatura moral. Quando se candidatou à presidência do Peru, em 1990, rompeu de vez com a militância ideológica, e com boa parte dos amigos de outrora. A virada liberal veio de uma fratura real: o terror de Sendero Luminoso, a falência do Estado, o autoritarismo disfarçado de revolução. No Brasil, Ferreira Gullar fez movimento semelhante. Paulo Francis, idem. Mudaram porque pensaram. E pagarão para sempre o preço de terem escolhido o risco da reflexão à segurança do rebanho.
O romance não vota, mas pensa
Quando Llosa ganhou o Nobel, o mundo reconheceu o óbvio: que sua literatura excedia em muito a biografia do homem. Uma obra vasta, ambiciosa, com mais de 50 anos de produção contínua, capaz de retratar o poder com nuances, a América Latina com ternura e crueldade, o indivíduo com ironia e espanto. E, ainda assim, houve quem torcesse o nariz. Gente que não leu, mas opinou; gente que leu, mas se arrependeu de ter lido, pois o autor passou a pensar “errado”. O que deveria ser uma lição sobre a autonomia da arte virou uma nova tentativa de domesticação: só vale o artista que pensa como eu. O resto, cancela-se. Esse é o vício de origem da nossa intelligentsia: a recusa da contradição. E a contradição, lembremos com Montaigne, é o único sinal verdadeiro de humanidade: “somos, todos, tecidos de contradições: se às vezes digo o contrário do que disse, é porque me examino com mais rigor”.
Proust pode ensinar algo aqui. Proust, o dândi neurótico, o homem que nunca saiu do quarto, mas escreveu o mundo. Proust, que foi acusado de frivolidade, de elitismo, de alienação, e escreveu, com “Em Busca do Tempo Perdido”, a mais profunda dissecação da alma humana já registrada em literatura moderna. Ele mesmo dizia: “a verdadeira vida, a vida finalmente descoberta e iluminada, é a literatura.” O autor social, o sujeito das manchetes, é espuma. A obra é abismo. O erro está em querer exigir de um autor coerência moral, quando o que importa é a intensidade da sua percepção, a potência do seu estilo, a profundidade de sua imaginação. Vargas Llosa não é exemplo de virtude, que bom!, mas de inteligência em combustão. E sua literatura continuará a arder, mesmo depois de sua morte, como devem arder todos os que tiveram a audácia de viver com lucidez.
Em defesa de uma literatura sem partido e uma crítica madura
Vargas Llosa, em seu ensaio “Em defesa do Romance”, declara, com uma beleza que chega a constranger pela honestidade, que “o romance é uma mentira que diz a verdade”. E o diz como quem escreve com os olhos em chamas e a mão ferida de tanto sublinhar a vida. Ali, o escritor não defende apenas um gênero literário, mas uma forma de existir no mundo: a da dúvida, da imaginação, da inquietude sem repouso. Já bastaria esse texto para lhe devermos algo, como quem agradece a um amigo que nos revelou um sentido secreto do mundo. Mas devemos mais. Devemos o que ele escreveu com coragem, o que disse com liberdade, o que pensou mesmo quando não concordamos. E se não somos capazes de conviver com um autor que nos contradiz, então ainda não aprendemos a ler. Leitura que é só confirmação de nossas crenças é doutrina, não literatura.
O texto “Considerações de um apolítico”, de Thomas Mann, já nos alertava sobre o perigo de submeter a arte ao dever ideológico. “A arte não é a consciência da nação; ela é o sonho da nação.” Sonho, não panfleto. Literatura é lugar de vertigem, de dúvida, de contraditório, não é cartilha de comportamento nem manual de militância. O que se quer hoje, de Vargas Llosa e de outros, é que se comportem como personagens escritos por terceiros: obedientes, exemplares, domesticáveis. Itamar Vieira Júnior, dispensável, frágil quando por sorte acerta; fraco quando é só ele mesmo e conta com seu talento de plateia e claque da esquerda ingênua. Mas os grandes não se deixam domesticar. Llosa não é um modelo, é um problema. E os escritores-problema são os únicos que realmente interessam. As pessoas-problema também são as que valem a pena: elas têm nuances a decifrar. Disse Baudelaire, roubando de Shakespeare: “Quero perto de mim os que ardem!” Um escritor que não nos constrange em nada, que não nos desafia, que não nos tira o chão, é só um eco de nossas certezas. E certezas, em excesso, matam a inteligência. Seria como atribuir a um grupo de pesquisadores, não o desenvolvimento de uma pesquisa, que, como em toda ciência, precisa continuar para além deles, mas sim o status de terem elaborado uma verdade definitiva atingida e acabada a respeito de um recorte espaço, temporal e estilístico da literatura. “Meninos, eu vi.” Coisas que chocam.
Contra os paladinos da moral
No fim das contas, eu não pretendo canonizar Llosa — quem sou eu pra isso? Quero “descanonizar” o patrulhamento. Defender a literatura como campo de liberdade, a crítica como arte da mediação e a leitura como ato adulto. Quando um autor morre, é de bom-tom perguntar o que nos legou. Llosa nos deixa o melhor e o pior de si, e a grandeza de um escritor está em que sua obra sustenta ambos. Se a intelectualidade brasileira não é capaz de reconhecer isso, talvez precise de mais romance e menos dogma. Talvez precise se lembrar de que um clássico não é quem nos agrada sempre, mas quem nos obriga a repensar o que julgávamos saber. Como disse Barthes, “ler é escrever o texto no espaço de nossa liberdade”. Vargas Llosa nos ofereceu esse espaço. Que saibamos, ao menos, habitá-lo sem medo e com alguma vergonha de ainda não sabermos lidar com a literatura como adultos.