A ideia é a coisa mais poderosa que existe! Para o velho Einstein, a imaginação era mais importante que o conhecimento. Se ele tinha razão, e acertou muito sobre o universo, estava teorizando sobre a força de uma ideia. Mundos foram criados e destruídos por causa dessa potência. Mas há algo íntimo na realização de um desejo que só é possível graças aos comportamentos de uma época. Em geral, a ideia que o homem das cavernas tinha ao criar um artefato de pedra para ceifar a vida de um animal, por fome ou segurança, não destoa tanto, por exemplo, da ideia do siderúrgico de criar uma peça revolucionária capaz de sustentar um novo invento engenhoso. A necessidade e as regras tornam o realizador da ideia um indivíduo dotado de possibilidades.

Ödön von Horváth, em seu livro “Juventude sem Deus”, trata exatamente desse conceito. Um professor, na Alemanha nazista, tenta ensinar que não se pode ter preconceito em relação à cor da pele, numa escola onde os alunos são formados, externamente, sob a doutrina da superioridade racial. Sem sucesso, por conta da devoção dos pais à ideia colonialista e racista imposta pelo Terceiro Reich, o professor defende as pessoas pretas depois de ler uma declaração profundamente agressiva na redação de um de seus alunos e é penalizado por sua opinião dissidente diante de uma classe burguesa acomodada, pedante e politicamente afetada. Horváth, por meio da voz narrativa do professor idealista, tenta construir uma justificativa para o comportamento das pessoas de sua época e esbarra com o desaparecimento de Deus diante da injustiça no confronto entre indivíduos de diferentes cores, credos ou raças. Tudo num ambiente delicado, às voltas com uma guerra mundial. “Felicidade é sempre bom, penso comigo, e saudável você é, graças a Deus! Bato na madeira. Mas contentamento? Não, contente, na verdade, não estou. Mas, afinal, ninguém está.” pensa o professor ao receber de seus pais as felicitações pelo seu trigésimo quarto aniversário.
“Juventude sem Deus”, para além de um discurso sobre o comportamento social dos jovens alemães no início do século passado, é um romance policial muito bem construído. Enquanto os alunos se reúnem em um acampamento, com militares e o professor, para atividades de treinamento militar, o professor narra sua experiência na tutoria dos garotos durante esse período e percebe que o inusitado toma lugar na ação. Um roubo acontece e, em seguida, um assassinato. O absurdo de tudo está no fato de que o acontecimento envolve uma garota fugitiva, um garoto que possui um diário onde registra os eventos de sua estada no acampamento e detalhes de sua vida e de seus companheiros, um romance precoce e intenso e um motivo profundamente estranho.
Os garotos são nomeados pelas iniciais de seus sobrenomes. O aluno morto no acampamento, chamado N, foi encontrado numa vala depois de todos esperarem que ele voltasse no dia marcado para o retorno às suas casas. Os envolvidos são Z, o dono do diário, e T, um petulante observador e muito discreto colega de escola. O que interessa ao professor é o fato de ter violado o diário de Z enquanto este se encontrava com a garota, escondido, e quando N é acusado de ser o violador, ele não tem coragem de dizer que era ele o real culpado da acusação. O crime se deve a isso, ao fato de Z ter anunciado em seu livro que mataria qualquer um que mexesse em seus pertences.
Há, em “Juventude sem Deus”, um distanciamento na relação entre pais e filhos, uma busca pela superioridade na formação que reflete a frustração paterna e a relação cega com um sistema político-ideológico premente. A educação terceirizada, a imposição pela conduta, a ideia da liberdade de ação de um grupo que se sente superior a outro, tudo isso sendo construído nas gerações mais novas como um atributo natural do comportamento.
Von Horváth conduz uma investigação, que é narrada pelo professor, labiríntica e complicada, para chegar efetivamente ao criminoso cuja motivação era simplesmente a curiosidade de matar alguém. A ideia que lhe foi incutida na mente, sabe-se lá por que motivos, era a de aniquilar uma vida, ver um corpo morto por ele, realizar com o poder que possuía o extermínio de algo. E essa ideia tornou-se uma obsessão, que, para além das inúmeras razões que poderiam justificar o assassinato, foi a única, terrível e rara, possibilidade que se apresentou como desfecho da história.
T matou N. Matou por causa de uma ideia. E, após implantá-la em camadas muito profundas, não pôde mais dissuadir seus sentimentos de não realizá-la. E pôde porque sua doutrina permitia. Conceito bem explorado em “Vida e Época de Michael K”, de J. M. Coetzee. Ao tentar matar um cabrito, empurrando sua cabeça na lama para afogá-lo, Michael sente que essa tarefa passou dos limites, que não é necessária, mas precisa provar para si mesmo que é capaz, que sua potência existe para, no mínimo, matar um cabrito para comer. Ou seja, para realizar uma ideia. “Tenho de ser duro, pensou, e apertar até o fim, não posso vacilar.” Toda essa cena, diga-se de passagem, é fabulosa no sentido de que os detalhes são terríveis e assustadores. Mas a tese foi defendida. Ao final, depois de se acalmar, Michael “teve uma visão de si mesmo montado na cabra até matá-la na lama, à luz da lua, e estremeceu. Gostaria de enterrar a cabrita em algum lugar e esquecer o episódio, ou então, melhor ainda, dar um tapa no traseiro do bicho e vê-lo se pôr de pé e sair trotando”.
Aí reside a genialidade desse livro único. A formação e a vivência dos jovens da época de Horváth os levaram a entender que qualquer coisa é possível. Uma ideia pode ser realizada se as leis ditam que um humano inferior pode morrer, pois sua vida não vale nada. Deus está o tempo todo na narrativa como um personagem à espreita. É uma sombra da moral, do comportamento e do rigor. “Lanço um olhar para Deus. Ele sorri. Por quê? E enquanto me faço essa pergunta, ele desaparece. Foi-se outra vez.” “Juventude sem Deus” discute o fato de que a consciência do indivíduo maduro é o vetor que o conduz ao norte da disciplina e da coerência. O abandono de Deus é uma metáfora para a sua mudança de morada. Ele sai do seu alto firmamento, de seu trono isolado, para residir na razão e de lá ditar regras de conduta. Contrariando Nietzsche, para Horváth, Deus não morreu como anunciou o sábio na floresta, mas alugou um apartamento na Terra, nos corações acordados e à frente de seu tempo.
Livro: Juventude sem Deus
Autor: Ödön von Horváth
Tradução: Sergio Tellaroli
Páginas: 176 páginas
Editora: Todavia
Nota: 8,5/10