Não é incomum que o mal adote máscaras de conveniência: ele pode caminhar entre os escombros de civilizações frágeis ou infiltrar-se em cantos esquecidos onde a esperança já não tem fôlego. Sua vocação para o disfarce o torna perigoso — uma ameaça que floresce sob a aparência de oportunidade, geralmente ofertada aos que mais carecem de alternativas. Quando essa promessa perversa se concretiza na forma de um matador sem emoção, que extermina vidas como quem poda arbustos em decomposição, o mundo deixa de ser cinza e adquire contornos mais frios e afiados. Em “O Jardineiro”, essa alegoria encarna um sujeito cuja insensibilidade foi patologicamente forjada — uma criatura moldada pela ausência de vínculos, cujo ofício é a eliminação precisa e indiferente.
Mas a eficácia da frieza absoluta pode ser também sua condenação. Há algo de irônico na trajetória de Elmer Jurado, protagonista da série concebida por Miguel Sáez Carral: ao mesmo tempo em que domina a arte de matar sem hesitação, ele se vê diante de um colapso interno que desafia toda sua lógica de sobrevivência. Escondido atrás da delicadeza de flores ornamentais, esse executor metódico começa a experimentar impulsos emocionais que escapam à sua compreensão. O roteiro, cocriado com Isa Sánchez, evita didatismos e mantém o mistério em ebulição, permitindo que cada episódio se desenrole como uma pétala decrépita desabrochando ao avesso — o espectador nunca sabe qual será o próximo perfume: atraente ou venenoso.
A introdução da série não fornece nenhuma pista sobre a dimensão psicológica que se seguirá. Um homem se despe lentamente à beira-mar, preparando-se para mergulhar nas águas geladas da Galícia. O instante de serenidade é abruptamente rompido quando ele é injetado com uma substância esverdeada que sela sua morte. Em paralelo, escutamos a narrativa de uma mulher sobre o acidente cerebral que afetou seu filho, Elmer, ainda pequeno. A lesão no córtex frontal suprimiu-lhe a capacidade de sentir, tornando-o uma ferramenta ideal para os interesses da mãe, La China — uma ex-atriz que viu na tragédia do filho uma oportunidade de negócio: terceirizar mortes que exigem sigilo absoluto.
É a partir dessa ambiguidade moral que a série constrói suas camadas mais densas. Ao revisitar o assassinato da praia, investigado pelos policiais Carrera e Torres (María Vázquez e Francis Lorenzo), a história ramifica-se para incluir Violeta, uma professora acusada pela morte de um aluno. Aparentemente desvinculados, os núcleos colidem em tensão crescente. Cecilia Suárez, Álvaro Rico e Catalina Sopelana formam o trio responsável por sustentar os arcos emocionais mais complexos da série — especialmente Sopelana, cuja personagem desestabiliza a lógica impenetrável de Elmer e planta nele algo próximo da humanidade. No entanto, a possibilidade de regeneração é sabotada pelo surgimento de um tumor cerebral que ameaça aniquilar qualquer resquício de empatia recém-descoberta.
Embora o enredo possa ser lido como um thriller com ingredientes típicos — crime, investigação, suspense e reviravoltas —, seu diferencial repousa na ousadia poética com que lida com o horror. Carral e Sánchez não apenas constroem uma narrativa sobre morte encomendada, mas exploram como a sensibilidade — ou sua ausência — se torna um campo de batalha. A série trafega entre brutalidade e lirismo, evidenciando que a violência mais perturbadora é aquela que se infiltra pelas frestas da linguagem, nas metáforas disfarçadas de simplicidade, e na ternura corrompida pelo cálculo.
“O Jardineiro” não pretende redimir seu protagonista, tampouco puni-lo com moralismo raso. O que está em jogo é a observação de uma mutação — não de caráter, mas de percepção. Quando a lógica do desinteresse deixa de funcionar, a ameaça não parte do sistema, mas da própria consciência que desperta, ainda que tardiamente, para o peso daquilo que se extingue. E é nesse ponto que o enredo atinge sua vibração mais inquietante: a ideia de que até mesmo um assassino pode ser vítima — não da culpa, mas do súbito vislumbre daquilo que jamais foi capaz de sentir.
Série: O Jardineiro
Criação: Miguel Sáez Carral
Direção: Rafa Montesinos e Mikel Rueda
Ano: 2025
Gêneros: Drama/Mistério/Thriller
Nota: 8/10