Ninguém sai ileso: o filme mais belo da história voltou ao Prime Video e ainda é uma ferida aberta no coração do cinema Divulgação / Warner Bros.

Ninguém sai ileso: o filme mais belo da história voltou ao Prime Video e ainda é uma ferida aberta no coração do cinema

Sergio Leone tinha obsessões pouco convencionais: preferia os cheiros da rua à assepsia dos estúdios, e declinava projetos promissores em nome de causas pessoais que não se explicavam por lógica de mercado. Quando recusou o convite para dirigir o primeiro filme de “O Poderoso Chefão”, não foi por arrogância, mas por convicção. Leone vislumbrava algo mais íntimo e dissonante: narrar a espinha dorsal da sociedade americana a partir de um elo improvável entre dois garotos miseráveis. Não falava inglês, não era do país, tampouco buscava romantizar o sonho americano. Seu interesse se voltava para os escombros — os becos malcheirosos de Nova York, onde a infância se confunde com a delinquência e a amizade se entrelaça à ruína moral.

O filme que daí nasceria — uma adaptação da narrativa semi-autobiográfica de Harry Grey — não é apenas uma revisitação da gênese da máfia nos Estados Unidos, mas uma lente de aumento sobre a deformação ética como fenômeno estruturante. A juventude de Noodles e Max — e dos cúmplices que os orbitam — se desenha num terreno onde os códigos morais são maleáveis e a pobreza corrói o discernimento. O que Leone realiza é uma arqueologia do trauma: camadas de violência simbólica e material se sedimentam até que a identidade dos personagens se funda com o ambiente hostil que os molda. Noodles, em especial, caminha como um sobrevivente de si mesmo, arrastando para a tela uma angústia que ressoa como eco prolongado de um passado que se recusa a fenecer.

Poucos filmes enfrentaram com tanta coragem o tempo. “Era uma Vez na América” precisou ser encolhido, costurado e submetido a concessões estruturais sem abdicar de sua densidade. Das dez horas de material bruto, duas versões de três horas foram destiladas, até que o montador Nino Baragli, uma das mentes mais reverenciadas da edição europeia, fosse incumbido da proeza de sintetizar a saga num longa de três horas e quarenta minutos. O resultado jamais seria leve, mas tampouco se pretendia acomodar sensibilidades frágeis. Leone, intransigente, fez valer sua visão sem o respaldo de redes sociais, algoritmos ou testes de audiência. Aquilo que poderia ser um fracasso retumbante se transformou em monumento cinematográfico — e sem fazer concessões ao gosto do momento.

A trilha sonora concebida por Ennio Morricone ultrapassa a função de acompanhamento. Ela opera como instância narrativa paralela, evocando sem enunciar, sugerindo o que a imagem silencia. “Poverty”, o tema que encarna o espírito de Noodles, não apenas emociona — ele traduz a essência do personagem com a precisão que o diálogo, por vezes, não alcança. A ausência de indicação ao Oscar não é um lapso; é um sintoma de uma indústria que, tantas vezes, não reconhece a genialidade que escapa aos seus protocolos. Em “Era uma Vez na América”, a música e o silêncio são equivalentes — e é aí que reside a potência da construção de Leone. Não há pressa em explicar. O tempo é dilatado, como quem repensa cada gesto da memória antes de verbalizá-lo.

A trajetória de Noodles não segue a cartilha da redenção, mas tampouco se entrega ao niilismo raso. Sua culpa paira como bruma, sem resolução. O filme constrói, nessa indecisão ética, sua mais aguda provocação: até onde vai o autoengano que nos permite continuar existindo? E se o presente não passa de uma repetição inconsciente de escolhas mal resolvidas? Nesse labirinto de incertezas, o protagonista não se justifica, tampouco se defende. Ele apenas habita o vácuo moral que ajudou a criar. Sergio Leone não oferece alívio; seu cinema é desconforto contínuo, deslocamento programado. Ao recusar fórmulas e arcos reconfortantes, abre espaço para uma experiência que exige atenção plena e incômodo reflexivo.

O silêncio — especialmente nos 30 minutos iniciais — é tratado como linguagem. A narrativa se move não por explicações, mas por detalhes que exigem leitura atenta: um toque de telefone que costura tempos distintos, uma sombra que denuncia o envelhecimento dos ideais. O jogo de temporalidades nunca é gratuito. Do início do século ao regresso nos anos 1960, cada época carrega sua desilusão específica. E quando Noodles retorna ao lugar de onde partiu, o que encontra é menos um cenário e mais um espelho distorcido do que já foi. A suspeita de traição, que paira como um espectro, não busca ser resolvida. O interesse de Leone não está na reabilitação moral dos personagens, mas na corrosão das certezas do espectador.

A leitura política de “Era uma Vez na América” extrapola o enredo. Leone — italiano, mas atento aos ruídos do capitalismo americano — escancara a farsa de uma nação que vende glórias e acumula ruínas. A marginalidade dos garotos, longe de ser acidente, é projeto: espelha um país que cresce pela violência e se alimenta da exclusão. O embate com o sindicato, por exemplo, não é apenas circunstancial: é metáfora de um sistema que prefere o confronto à negociação, a imposição ao diálogo. Nessa lógica, o filme atinge uma atualidade surpreendente — não como denúncia panfletária, mas como desconstrução sensível e brutal de um ethos nacional.

Leone dialoga com mestres como Kubrick e Antonioni não apenas por reverência estética, mas porque entende, como eles, que o cinema é instrumento de pensamento, e não apenas de entretenimento. “Era uma Vez na América” não propõe saídas, não oferece respostas. Seu gesto mais radical é expor a falência daquilo que se pretende ideal. Se há possibilidade de paz, ela se esconde nos interstícios: num gesto inconcluso, num olhar que evita o confronto, num silêncio que não é vazio, mas contenção. A sensação final é de vertigem — como quem acorda de um sonho que, ao contrário do esperado, revelou o que mais se queria esquecer.

Filme: Era uma Vez na América
Diretor: Sergio Leone
Ano: 1984
Gênero: Crime/Drama/Épico
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★