Deus é a metáfora que cada consciência fabrica conforme seus vazios e urgências. Às vezes, Ele é o redentor que nos acolhe na queda; noutras, o juiz impassível que observa nosso colapso sem mover um músculo. Em alguns momentos, veste-se de razão e lucidez; em outros, encarna a inclemência do acaso. Essa ambivalência atravessa séculos de pensamento, tensionando a fé entre o consolo e o desespero. Spinoza tentou dissolvê-lo na ordem do universo; Hobbes o viu como um reflexo da brutalidade humana. Entre o sopro divino e a carne que apodrece, o homem sempre tentou entender o ininteligível — e nisso talvez esteja seu gesto mais audacioso: crer, ainda que o silêncio de Deus ensurdeça.
Mel Gibson não propõe respostas. Sua leitura das últimas horas de Cristo parte de uma convicção, mas o que oferece ao espectador é um campo de atrito: entre a comoção e o incômodo, entre a rendição mística e a denúncia sensorial da dor. O título se ancora na acepção teológica do sofrimento redentor, mas a mise-en-scène conduz o olhar a um lugar mais cruel, onde o divino parece escoar-se por entre o sangue e o barro. Não há espaço para doutrinas ou promessas; o que se vê é um corpo sendo despedaçado pela ignorância e pelo fanatismo — e, em seu silêncio, consentindo.
A estrutura narrativa escolhe a via do reconhecimento. Recriar as 14 Estações da Via Crucis, para além de sua função litúrgica, é uma maneira eficaz de aproximar o rito da carne, transfigurando o símbolo em matéria sensível. A câmera insiste no contato direto com a dor, não como espetáculo gratuito, mas como linguagem da experiência. Se há um excesso, ele serve a uma finalidade clara: confrontar o espectador com aquilo que normalmente prefere manter à distância. A estética da violência, meticulosamente encenada, não suaviza o horror — ao contrário, reclama responsabilidade emocional de quem assiste. É como se Gibson dissesse: “Veja até onde vai a fé quando coberta de ódio.”
A figura de Satanás, feminina, glacial e ambígua, introduz uma dimensão perturbadora. Não há gritos, nem fúria — apenas o olhar e a presença gelada que atravessa as cenas como um veneno sussurrante. Rosalinda Celentano encontra nessa figura andrógina uma cadência maligna que seduz pela passividade e inquieta pela sugestão. Sua existência no filme não serve à função clássica do antagonista, mas encarna a tentação que observa e se alimenta da queda alheia. O inferno, aqui, não é um lugar. É a plateia.
Jim Caviezel, com sua serenidade martirizada, empresta ao personagem uma fragilidade desarmante. Seu Cristo não é o herói estoico nem o ícone idealizado: é o homem lançado ao absurdo, consciente de seu destino, mas ainda sujeito ao medo, à súplica, à exaustão. Seus momentos mais memoráveis não são os gestos performáticos, mas os instantes de suspensão — quando a dor física se funde ao abandono metafísico, como no lamento final em aramaico, cuja sonoridade remete a algo anterior à linguagem, algo primitivo e incontornável, como o choro de um recém-nascido ou o último sopro de um condenado.
É inevitável perceber certa manipulação narrativa na forma como Gibson encerra a história. A escolha por interromper a narrativa no auge do martírio sugere uma estratégia de mercado, ainda que disfarçada de reverência bíblica. A promessa de uma continuação que explore a ressurreição soa menos como expansão teológica e mais como cálculo de engajamento. Uma abordagem integral, que contemplasse a totalidade da trajetória messiânica, talvez tivesse favorecido um mergulho mais pleno. Ainda assim, o impacto é inegável — e, para alguns, transformador.
Há quem veja neste filme um rito de confirmação; outros o tomam como provocação ou espetáculo gráfico. Mas a verdade é que “A Paixão de Cristo” não busca consenso. Ela instala uma ferida. E diante dela, cada um decide se estanca o sangue com fé, com crítica ou com lágrimas.
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