O melhor filme que você vai ver neste fim de semana é um épico medieval com Matt Damon, Adam Driver e Ben Affleck — no Prime Video Divulgação / 20th Century Studios

O melhor filme que você vai ver neste fim de semana é um épico medieval com Matt Damon, Adam Driver e Ben Affleck — no Prime Video

Alguns seres humanos são compelidos a aceitar, ainda na infância, que o mundo lhes oferecerá apenas fragmentos pálidos da existência — restos que escorrem dos banquetes alheios. Para esses, o afeto é uma ruína ancestral: uma estrutura que já desabou, mas que insiste em se manter ereta, fincada em ilusões pintadas com as cores da mentira. Nada mais resta, senão recorrer a invenções colossais que o homem produz quando se sente afundar — uma delas, talvez a mais nobre, é a filosofia.

No entanto, ainda que o pensamento se organize em espirais ambiciosas e se estenda através dos séculos como um antídoto para a dor universal, há feridas que permanecem abertas, fora do alcance de qualquer elixir racional. Sob essa luz, ergue-se uma indagação perturbadora: o que representa a palavra de uma mulher em um tempo que a considera quase inexistente? Em pleno século 14, na França feudal, Marguerite de Carrouges conheceu a resposta — e ela ecoava o silêncio da opressão. A partir desse vácuo histórico e moral, Ridley Scott esculpe “O Último Duelo”, um de seus épicos mais viscerais, no qual o amor é desfigurado pela barganha, a honra se revela veneno e a violência permeia cada batida de tambor da narrativa.

Miguel de Unamuno, com seu espírito de náufrago filosófico, anotou certa vez que viver é, essencialmente, esquecer. Mas o esquecimento não é um fenômeno passivo: trata-se de uma escolha calculada sobre o que devemos obliterar e o que deve persistir — mesmo que doa, mesmo que denuncie. Com base no livro de Eric Jager, que destrincha um episódio real da Idade Média francesa, o roteiro de Ben Affleck, Matt Damon e Nicole Holofcener invade essa crônica de brutalidade e fingimento com a precisão de um bisturi: expõe a fantasia de Marguerite, uma mulher nobre supostamente abençoada por um destino de contos encantados, e revela a engrenagem implacável que destrói tais ilusões. O estupro cometido por Jacques Le Gris — um amigo íntimo do marido da vítima — transforma sua vida em arena. Mas o que está em jogo não é apenas sua integridade, e sim a validade de sua palavra em uma sociedade que considera a verdade feminina uma provocação imperdoável.

A parceria criativa entre Affleck e Damon, forjada no sucesso retumbante de “Gênio Indomável”, reencontra aqui sua veia crítica mais afiada, mergulhando em uma trama em que os pactos sociais se confundem com contratos de servidão. Marguerite e Jean de Carrouges unem-se por conveniência, não por paixão, e dessa transação brota o ambiente ideal para que a violência aconteça — e seja legitimada. Não é coincidência que o crime cometido contra ela demande um julgamento por combate: o sistema medieval recusa o testemunho da vítima e transfere à espada o fardo de decidir o que é verdade. Não se trata, portanto, de justiça, mas de uma teatralização brutal que finge imparcialidade enquanto devora qualquer esperança de reparação.

Scott não opta por sutilezas ao retratar essa distorção. Seus personagens são moldados com firmeza, mas nunca perdem a densidade emocional. Adam Driver constrói um Le Gris ao mesmo tempo sedutor e abjeto, enquanto Matt Damon imprime a Jean de Carrouges uma rigidez que oscila entre dignidade e obstinação cega. Mas é Jodie Comer quem redefine os contornos da narrativa. Sua atuação como Marguerite não busca piedade nem revolta explícita: ela ergue um retrato complexo de uma mulher que se recusa a desaparecer, mesmo quando tudo — da corte ao lar — deseja apagá-la. Seu silêncio é construído com camadas de tensão, e cada olhar parece carregar séculos de resistência muda.

Mais do que reconstruir um episódio específico do passado, “O Último Duelo” insinua que a brutalidade medieval não desapareceu — apenas aprendeu a se disfarçar. O filme escancara os mecanismos de um tempo em que a violência era institucional e o consentimento, uma ideia estrangeira, mas também permite ao espectador perceber que essas estruturas permanecem, adaptadas e sorrateiras, na contemporaneidade. A batalha de Marguerite, portanto, não se encerra com a queda de um homem em combate: ela se perpetua como uma alegoria feroz sobre o modo como as vozes femininas são sistematicamente desautorizadas — não por ausência de verdade, mas por excesso de conveniência alheia.

Em última instância, o que Scott orquestra aqui não é apenas uma denúncia, mas um embate entre versões da realidade: aquela construída por instituições e aquela contada por quem foi destruído por elas. E a pergunta que ecoa ao final não é quem venceu o duelo, mas quem teve o direito de contar sua história — e por quanto tempo esse direito precisou ser arrancado à força.

Filme: O Último Duelo
Diretor: Ridley Scott
Ano: 2021
Gênero: Ação/Drama/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★