O filme que conquistou 6 Oscars e redefiniu o cinema acaba de estrear na Netflix Divulgação / Miramax

O filme que conquistou 6 Oscars e redefiniu o cinema acaba de estrear na Netflix

Há crimes cometidos por mulheres que não cabem nas molduras usuais do melodrama. Insistir em explicações centradas unicamente em impulsos amorosos é não apenas reducionista: é um desserviço intelectual que transforma uma teia complexa de motivações, contextos e desilusões numa caricatura social. A criminalidade feminina, embora menos visível, carrega uma densidade simbólica que desafia categorias fáceis — e quando transposta para a arte, exige um olhar que não se renda ao óbvio. No final da década de 1920, uma história de sangue e escândalo atravessou os tribunais e os jornais até se converter em material de inspiração para um dos musicais mais irônicos e vigorosos da modernidade. “Chicago”, criação de John Kander, Fred Ebb e Bob Fosse, não apenas absorve esse enredo real como o reconfigura em sátira pungente sobre fama, vaidade e oportunismo, condensando com precisão a mutação da cultura norte-americana ao longo do século 20.

O espetáculo estreou no coração da Broadway em junho de 1975, condensando em suas luzes uma crítica tão ácida quanto coreografada ao circo midiático que se instalava nas cortes e na imprensa. Com 936 apresentações consecutivas, o musical pavimentou sua própria lenda, apenas intensificada com o renascimento em 1996, que transformou o revival num evento permanente e globalizado. A longevidade da peça não se explica apenas pela força do repertório musical ou pela estética exuberante, mas por sua capacidade de traduzir, com cinismo elegante, o fascínio coletivo pelo espetáculo da transgressão. Quando Rob Marshall decidiu transportar essa essência para as telas, em 2002, seu desafio era mais que técnico — era quase alquímico: preservar a insolência do palco sem esvaziar a densidade simbólica do material original. E ao construir seu filme como uma explosão de excessos cuidadosamente encenados, Marshall não apenas atualizou a linguagem do musical para o cinema: resgatou sua potência enquanto instrumento de crítica cultural.

A genealogia dessa versão cinematográfica remonta diretamente à pulsação visual de “Moulin Rouge — Amor em Vermelho”, lançado um ano antes. Mas onde Baz Luhrmann se entrega ao delírio romântico, Marshall aposta na dissecação da ilusão. O roteiro — sustentado pelos escritos póstumos de Ebb e anotações prévias de Fosse — desenha um universo onde a manipulação é virtude e a mentira, moeda corrente. Roxie Hart, loira de olhar vidrado e ambição voraz, apaga da vida o amante que já não lhe servia e, com desfaçatez calculada, envolve o próprio marido em sua teia de defesa jurídica. Já Velma Kelly, diva de sangue quente e precisão letal, encontra na tragédia familiar a oportunidade perfeita para reafirmar sua presença nos holofotes. Ambas disputam, como marionetes cínicas, a atenção de Billy Flynn — advogado que, a preço fixo, transforma culpadas em celebridades inocentadas. Sua retórica é um espetáculo à parte, encarnado com brilho irônico por Richard Gere, e simboliza a simbiose entre o judiciário e o entretenimento.

O filme articula visualmente seu comentário mordaz por meio da fotografia de Dion Beebe, que enfatiza tons de vermelho e preto como códigos de desejo e condenação. Essa paleta cromática não é meramente estética: ela sinaliza a implosão da moral pública num cenário onde tudo — inclusive o crime — é negociável. Renée Zellweger e Catherine Zeta-Jones dão forma às ambiguidades das protagonistas com uma entrega performática que ecoa os anos 1920 e seus paradoxos: a era do jazz, da emancipação e da ruína iminente. A presença de Queen Latifah como Mama Morton fecha esse ciclo com uma nota dissonante e necessária: a figura da carcereira que exige afeto em troca de segurança explicita o sistema de escambos afetivos e corporais que sustenta a cadeia por dentro. A sexualidade, a raça e o poder transitam por sua personagem com força própria, desestabilizando qualquer ilusão de justiça imparcial.

Marshall não cria um musical apenas para entreter; ele reconstrói uma alegoria das engrenagens sociais que trocam ética por espetáculo. Em “Chicago”, a teatralização da vida real não é um detalhe, mas o nervo central de uma engrenagem que transforma o tribunal em palco e o veredicto em performance. Cada número musical serve como um espelho distorcido da realidade — grotesco, vibrante, sedutor — e denuncia, sem jamais sermonear, a lógica perversa que transforma a desgraça em produto de consumo. O filme não suaviza arestas nem oferece redenção às suas personagens; ao contrário, as eleva à condição de ícones do cinismo, expondo sem piedade as fissuras de um mundo que aprendeu a dançar sobre seus próprios escombros.

Filme: Chicago
Diretor: Rob Marshall
Ano: 2002
Gênero: Crime/Musical
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★