“Elas Marchavam Sob o Sol”, de Cris Judar, vem com passadas fortes, potentes, uma obra de difícil adjetivação, mas, certamente, uma evolução estética e na construção de personagens diante das outras prosas de mesma autoria. Os doze meses percorridos no livro lançado em 2024 têm a epígrafe certeira da poeta Diane di Prima, “Revolutionary Letters”: “You are political prisoner locked in tense body (você é uma prisioneira política trancada em seu corpo tenso)”. No virar de duas páginas, outro texto é farol para a marcha: “O sangue invade as vistas. E tinge campos, cidades e relações com o pior vermelho possível”. Sabemos “de cara” a que veio a prosa pulsante de Judar, que devora as linhas propostas em estilo que corta, afia e, mais à frente, coloca as palavras fincadas no chão.

Ana e Joan, personagens centrais do livro, estão prestes a completar dezoito anos de idade. Além-redes, as ditas sociais, o final da adolescência é ainda mais cruel e violento para as mulheres. Clark, que é um feto conservado em pote de formol no colégio, é classificado por Ana como ex-futuro-homem. Termo primoroso. É corpo-sintético: “eu, a garota de dezessete anos que não sabia se queria ser como o besouro [memória e forma] ou como Clark [aberração e impossibilidade]. O Dilema estava avançado”. A dor, a vergonha, as fugas interiores e as imagens (semântica) de diversos abusos são descritos de forma densa e brutal. A obra é de extrema urgência para a contemporaneidade literária, considerando que existem pressões (supressões) para que o artista produza dentro de padrões vigentes. A voz de Judar ecoa e aponta para outro caminho. Longe de qualquer tipo de identitarismo. Entretanto, o identitário é inerente ao leitor. A fabulação não é solitária ou surge em estado inconsciente e apartado da sociedade.
Joan é outra pessoa. Os aprofundamentos que questionam os valores da sociedade contemporânea têm manifestações diferentes nela, que é mais enraizada na família e na ancestralidade, bifurcada por tiranias que exigem outro tipo de sensibilidade, feito “A Mulher do Fim do Mundo”, eternizada na voz de Elza Soares: “A minha fala, minha opinião. A minha casa, minha solidão”. Joan é a personificação de uma liberdade calada, combatida, censurada, forjada pelos homens e ainda pelos valores (econômicos e culturais) de classes dominantes. É importante mencionar a intencionalidade de sufocação, das amarras impostas e invisíveis e, claro, pontiagudas: “aprendi sobre o que é estar viva, algo que, essencialmente, pode ser definido como um acumulado de mortes ocorridas em sucessão”.
Em carta, a mãe biológica de Clark, a personagem Estela Ramos, descreve para a gente como é o inferno tátil de uma presa política, resultado das liberdades suprimidas, conectando, entretanto, o ser estudado zoologicamente pela classe média no colégio, que pensa e age dentro do pote. A camada, então, expõe um não tão distante primeiro de abril. Chegaremos ao dia de expor fetos “comunistas” em potes de formol em colégios caros? Questões inúmeras que a autora permeia e recorre ao conceito inquietante de Freud, o espanto: “reencontrei o futuro pai do meu filho, gerado entre a grade e a parede. Tive uma visão, águas envolviam o seu corpo mínimo”. Cris seguiu mulheres que marchavam sob palavras fincadas no chão.
Por “Oito do Sete”, Cris Judar venceu o Prêmio São Paulo de Literatura em 2018. “Elas Marchavam Sob o Sol” foi publicado na Itália, no Egito e tem previsão de lançamento nos Estados Unidos neste segundo semestre.