Há filmes que observam o cotidiano com distância analítica. Outros o explodem por dentro. “Relatos Selvagens” recusa a neutralidade e opta pelo incêndio. Damián Szifron estrutura sua narrativa como uma sequência de pavios acesos, onde o banal é apenas a embalagem do descontrole absoluto. O filme propõe não um olhar, mas um espasmo: a súbita irrupção da fúria como linguagem legítima diante de uma realidade entupida de injustiças veladas. Em vez de aliviar tensões, Szifron as concentra até que o colapso se torne inevitável — e, mais do que isso, profundamente satisfatório para quem assiste. A farsa social que sustenta a vida em comunidade é posta à prova em cada segmento, como se a qualquer instante a máscara da civilidade estivesse a um triz de rachar.
Longe de construir um encadeamento tradicional, o longa adota uma estrutura de episódios autônomos que, embora desconectados em termos narrativos, compartilham o mesmo DNA emocional: o acúmulo de ressentimentos cotidianos que implode de maneira irreversível. A lógica do filme é a do acúmulo — não de eventos, mas de frustrações. Em “Pasternak”, a vingança se disfarça de coincidência até se revelar uma sinfonia de acertos de contas planejados. Em “As Ratas”, o ódio engolido encontra na comida um canal de execução precisa. Já “Estrada para o Inferno” desbanca qualquer verniz de racionalidade ao transformar um desentendimento no trânsito num ritual primitivo de destruição mútua. Cada história opera como uma armadilha ética: colocam-se diante do espectador situações-limite em que não se trata mais de quem tem razão, mas de quem já perdeu tudo — inclusive a razão.
Ao inserir personagens que transbordam fúria, Szifron evita julgamentos fáceis. O que parece inicialmente uma reação desproporcional logo se revela a única saída possível diante de sistemas disfuncionais, instituições opacas e estruturas que naturalizam o abuso. Em “Bombita”, um engenheiro é atropelado pela lógica impessoal da burocracia, mas devolve o impacto com uma precisão destrutiva que só alguém habituado a implodir edifícios poderia alcançar. Em “A Conta”, a moral é leiloada sem pudor, revelando a elasticidade ética de uma elite disposta a proteger seus privilégios a qualquer preço. E “Até que a Morte Nos Separe” encerra o ciclo como uma dança macabra de aparências ruídas, onde o casamento se converte em teatro de humilhações e revanche, revelando que o cerimonial não passa de uma fantasia sustentada por convenções frágeis.
Szifron parece nos dizer que o descontrole não é desvio — é resposta. E que por trás da explosão há método, por trás da violência há uma coerência perturbadora. O filme opera nesse limite entre o grotesco e o plausível, oferecendo personagens que nunca são apenas caricaturas. A sátira que embasa o roteiro não escapa da tragédia, mas também não recusa o riso — ainda que esse riso venha impregnado de incômodo. A narrativa desliza entre o absurdo e o reconhecimento íntimo, entre a ironia corrosiva e a empatia silenciosa. O espectador, cúmplice involuntário, é convocado a examinar até onde vai sua própria tolerância — e até onde resistiria antes de explodir.
Essa tensão é amplificada por um aparato técnico que trabalha em sintonia com o tumulto interno dos personagens. A fotografia de Javier Julia delineia cada cena com intensidade plástica, usando contrastes de luz e cor para materializar a crescente sensação de claustrofobia. A montagem de Pablo Barbieri Carrera estabelece um ritmo febril, sem permitir respiro entre um descontrole e outro. E a trilha sonora atua como marcador emocional, guiando o espectador entre o riso nervoso e a antecipação inquieta. Já o design de produção oferece ambientes que, mesmo reconhecíveis, carregam uma dose precisa de artifício — como se a realidade estivesse o tempo todo à beira do delírio.
Não há reconciliação ao final de “Relatos Selvagens”, tampouco há lição. O que permanece é uma espécie de vertigem moral, um prazer ambíguo por ver a transgressão não apenas tolerada, mas celebrada. O longa não busca respostas, mas dissecções. Ele desmantela as engrenagens invisíveis que sustentam o pacto social e revela, com precisão desconcertante, que há sempre um limite — e que cruzá-lo, por vezes, não significa perder-se, mas reencontrar-se. Poucas narrativas contemporâneas foram tão hábeis em dramatizar o instante em que o grito sufocado finalmente rompe a garganta — e ecoa, selvagem, por todos nós.
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