Filme que Steven Spielberg dispensou e que hoje é considerado a melhor ficção científica da história, na Max Melinda Sue Gordon / Warner Bros. Entertainment

Filme que Steven Spielberg dispensou e que hoje é considerado a melhor ficção científica da história, na Max

Há filmes que nos pedem atenção; poucos nos exigem entrega. “Interestelar”, de Christopher Nolan, não pretende ser apenas compreendido — ele demanda ser sentido como se estivéssemos em órbita, suspensos entre o que sabemos e aquilo que apenas intuímos. Ao embarcar em uma missão de sobrevivência cósmica, o espectador é convocado a percorrer muito mais que bilhões de quilômetros: o filme propõe um deslocamento radical do olhar, em que os limites entre ciência e afeto, entre desespero e coragem, se dissolvem sob o peso da gravidade e da ausência.

O ponto de partida é um mundo exaurido não por explosões espetaculares, mas por um esvaziamento gradual das possibilidades. Um planeta onde a poeira cobre os sonhos e o conhecimento é relegado ao subterrâneo. Ali, Nolan ergue um cenário que não precisa do apocalipse tradicional: o colapso já se instaurou no esfacelamento da curiosidade, na transformação da esperança em rotina agrícola. Nesse contexto, Cooper — interpretado com intensidade contida por Matthew McConaughey — surge não como herói, mas como um homem à deriva, cuja inquietação o impele a desafiar o imobilismo. Sua jornada não é guiada por glória, mas por uma urgência silenciosa de ainda acreditar que existe algo além do que restou.

O que se inicia como uma odisseia interplanetária logo se revela uma investigação sobre o que nos ancora mesmo quando tudo ao redor se desfaz. A missão da NASA clandestina não busca apenas planetas habitáveis: procura uma justificativa para continuar chamando isso de futuro. Ao reunir uma tripulação que representa diferentes facetas do pensamento humano — o pragmatismo, a fé na ciência, a intuição afetiva —, o roteiro costura tensões que jamais se resolvem completamente, pois seu propósito é justamente manter o espectador nesse estado de suspensão.

Há, no entanto, uma força silenciosa que arrasta tudo com ela — a trilha sonora de Hans Zimmer. Não se trata aqui de um simples acompanhamento musical, mas de uma linguagem paralela, quase espectral, que pulsa como um órgão vital do filme. Cada órgão, cada compasso, parece emular o som de um tempo que se estica, contrai e, às vezes, quase se quebra. Zimmer não ilustra emoções — ele as materializa. Em momentos de silêncio visual, a música explode por dentro, como se preenchesse os vácuos daquilo que os personagens não podem nomear. A relação entre Cooper e sua filha Murphy, por exemplo, ganha dimensão quase mística quando atravessada por essas composições que não pedem permissão para doer.

Nolan insiste no desconforto. Os planetas visitados não oferecem alívio — apenas novos enigmas. As paisagens, de uma beleza austera, funcionam como espelhos de um enigma maior: o que significa continuar, mesmo quando a linguagem, o tempo e a proximidade já não são garantias de compreensão? O conceito de “lar”, nesse universo rarefeito, não é geográfico, mas emocional. E talvez seja essa a provocação mais pungente do filme: deslocar o afeto para a equação da sobrevivência, sem perder o peso do gesto mínimo — uma promessa sussurrada, uma lembrança persistente.

A força estética do filme não é a exibição de efeitos extravagantes, mas na contenção com que tudo é disposto. A ambição visual está a serviço de um conceito que não se quer explicativo, mas experiencial. As representações do buraco negro, do tempo como dimensão maleável, da quinta dimensão como campo de afeto são ousadias que não miram no impacto imediato, mas na reverberação prolongada. A imagem mais arrebatadora talvez não seja aquela de galáxias em espiral, mas a de um pai diante de uma escolha impossível, entre salvar a espécie ou permanecer ao lado da filha. Nesse dilema sem solução satisfatória, o filme alcança sua densidade máxima.

As atuações reforçam essa arquitetura de contenção. McConaughey, em especial, entrega não um discurso heróico, mas um acúmulo de silêncios e olhares que sugerem tudo o que não se pode dizer. Anne Hathaway, com sua personagem aparentemente guiada por princípios abstratos, revela aos poucos a complexidade de quem compreende que, em última instância, até as escolhas racionais são atravessadas pelo desejo de amar. Michael Caine, como o Professor Brand, parece carregar em sua voz pausada o peso de todas as decisões não confessadas — aquelas que silenciam, mas reverberam.

“Interestelar” constrói seu legado não pelo que explica, mas pelo que perturba. Não é um filme que se esgota ao fim da projeção; é daqueles que continuam operando dentro do espectador, como uma equação inacabada que se recusa a fechar. Sua grandeza está justamente em não oferecer uma tese, mas um campo gravitacional de sentidos em colisão. E se tantos ainda discutem suas implicações físicas, morais e filosóficas, talvez seja porque o que Nolan realmente lançou ao espaço não foi uma espaçonave — mas uma pergunta. E essa pergunta segue em órbita.

Filme: Interestelar
Diretor: Christopher Nolan
Ano: 2014
Gênero: Aventura/Drama/Épico/Ficção Científica
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★