Não é sobre ascensão e queda. Tampouco sobre crime e punição. O que Martin Scorsese constrói em “O Lobo de Wall Street” escapa das categorias narrativas convencionais, porque sua matéria-prima não é a trajetória de um homem — é a estrutura de um vício. Um vício que tem rosto, terno, cifras, língua afiada e um nome: Jordan Belfort. O filme não observa esse personagem como quem analisa um fenômeno externo, mas o converte em lente distorcida pela qual passamos a enxergar o mundo. E nesse novo mundo, onde o dinheiro dita os ritmos e anula as consequências, o absurdo não apenas se justifica: ele se institucionaliza.
Scorsese, um dos poucos diretores com autoridade para transformar caos em método, escolhe a alucinação como idioma narrativo. O que vemos não é simplesmente contado — é encenado como uma experiência que nos atropela. Não há espaço para pausas morais ou julgamentos serenos. O ritmo é o de uma espiral, e quem entra nela abdica do chão. Durante três horas de um delírio embalado por cocaína, hip-hop e discursos inflamados, somos conduzidos não pela lógica da razão, mas pela lógica da aceleração. A montagem agressiva, os enquadramentos instáveis, a pulsação visual carregada de estímulos — tudo atua como extensão da psicose capitalista que o filme encarna.
Leonardo DiCaprio atinge um raro patamar de simbiose com o personagem. Ele não atua como Jordan Belfort: ele o hospeda. A performance ultrapassa o virtuosismo técnico; o que se vê é um corpo em transe, dominado por impulsos que se sobrepõem à vontade. DiCaprio transforma cada cena em uma vitrine da deterioração ética com brilho nos olhos, como se soubesse que a ruína vende mais do que a redenção. Há algo de desconcertante em assistir a um homem se perder e, ao mesmo tempo, rir. Mas esse é o pacto estabelecido desde o início: não haverá redenção, apenas espetáculo. E o riso que surge — cínico, cúmplice, desconfortável — é o reflexo mais fiel de uma plateia que já normalizou o grotesco.
Não por acaso, os momentos mais memoráveis do longa são aqueles em que o colapso físico se alinha ao colapso simbólico. A sequência da overdose de quaaludes, por exemplo, não se contenta em retratar o ridículo — ela o transforma em coreografia. DiCaprio, arrastando o corpo no chão como um réptil desgovernado, simboliza o que “O Lobo de Wall Street” tem de mais incômodo: o prazer visual diante da degradação. Jonah Hill, como o parceiro de Belfort, potencializa esse absurdo ao encarnar a estupidez gananciosa com uma entrega cômica quase indecente. Juntos, eles não formam uma dupla, mas um sintoma.
O roteiro de Terence Winter, adaptado das memórias do próprio Belfort, opta por não suavizar nada. Mas a força do texto está menos nos fatos do que na forma como os ressignifica. O filme não condena seus personagens de maneira frontal. Ele faz algo mais perigoso: permite que se autojustifiquem diante do público. É dessa ambiguidade que nasce o desconforto. Cada diálogo destila uma mistura de racionalidade perversa e sedução retórica. Não estamos diante de vilões caricatos — estamos diante de homens que dominaram a linguagem do poder e a usam como narcótico coletivo. O dinheiro, aqui, não é apenas objetivo; é o argumento final, o álibi universal.
Há uma cena breve, quase anedótica, em que Matthew McConaughey ensina a Belfort seu mantra: um tamborilar no peito, um som gutural, uma espécie de hino primal à especulação. Essa passagem, à primeira vista cômica, é na verdade um manifesto estético e filosófico do filme. O sistema financeiro é descrito como uma selva onde o instinto substitui o pensamento. Não há ética, só repetição ritualística. Esse mantra ecoa ao longo do filme não como lembrança, mas como método: o dinheiro como batimento cardíaco de uma sociedade intoxicada por promessas de grandeza.
Margot Robbie, em performance milimetricamente controlada, interpreta Naomi não como vítima nem cúmplice, mas como alguém que aprendeu a habitar o caos. Sua presença em cena funciona como contraponto silencioso à verborragia de Belfort — uma figura de resistência passiva em meio ao vendaval. Enquanto isso, o restante da entourage funciona como satélite de um sol em combustão. Cada personagem é uma engrenagem de uma máquina de autoengano coletivo que gira até explodir.
O grande feito de “O Lobo de Wall Street” é negar o conforto da moral. Ele não se encerra em uma lição. Ao contrário: ele infecta. Quando os créditos sobem, resta a pergunta incômoda — e agora? O que fazemos com o fato de termos nos divertido tanto assistindo à derrocada de um sociopata carismático? O filme não nos redime. Ele nos compromete. Porque ao fazer da destruição um espetáculo, ele revela não apenas os vícios de Belfort, mas os nossos. Afinal, quantos de nós assistiríamos novamente a tudo isso — e rindo ainda mais?
Se há uma crítica ali, ela não é dirigida a um homem, mas a um desejo coletivo. Não é Belfort que nos assusta — é o espelho que ele nos oferece. Scorsese, mais uma vez, desmonta o mito do herói americano, só que dessa vez com a lente voltada para o presente. Não há nostalgia aqui, apenas hiper-realismo febril. O que “O Lobo de Wall Street” entrega não é uma história, mas um diagnóstico: o capitalismo como dependência, o lucro como dogma, o caos como norma. E, talvez, o mais perturbador de tudo seja perceber que, mesmo conhecendo os efeitos colaterais, continuamos querendo mais uma dose.
★★★★★★★★★★