Há algo de profundamente perturbador — e simultaneamente fascinante — na forma como “Duna: Parte Dois” transforma a jornada de Paul Atreides em um rito de transfiguração moral. Denis Villeneuve, longe de se limitar à função de fiel adaptador de Frank Herbert, reposiciona o épico como uma meditação sobre o preço da liderança, o fascínio do messianismo e o ciclo vicioso entre fé e violência. Se a primeira parte operava como um prólogo meticuloso, onde cada figura era estrategicamente posicionada como peça de um xadrez em estado latente, a continuação dinamita esse tabuleiro e nos faz assistir, quase em tempo real, ao nascimento de um mito — e ao colapso ético que o sustenta.
O que Villeneuve realiza aqui não é simplesmente uma expansão narrativa ou um avanço lógico da trama. Trata-se de uma inflexão tonal, uma virada estrutural que recusa a previsibilidade. “Duna: Parte Dois” substitui a promessa por consequência. A aventura cede lugar ao rito. O herói cede lugar ao enigma. Há uma recusa clara do espetáculo pelo espetáculo, mesmo em cenas de batalha — nunca gratuitas, nunca decorativas. O ritmo imposto por Villeneuve é o de um cineasta que confia na construção de atmosferas, que entende que a verdadeira ação se dá nos subterrâneos das decisões, nos silêncios que antecedem a guerra, nas fissuras que surgem entre devoção e manipulação.
A comparação feita por Christopher Nolan — que enxergou na obra o equivalente geracional de “O Império Contra-Ataca” — não é uma exaltação banal. Há, de fato, paralelos entre os dois filmes, mas a analogia se justifica sobretudo pela coragem narrativa: ambos desconstroem expectativas, desafiam os mitos que antes apenas se insinuavam. Em “Duna: Parte Dois”, o destino não é tratado como revelação, mas como armadilha. O que parece ser ascensão é, na verdade, rendição ao inevitável.
A condução dessa trajetória encontra seu ápice na figura de Paul, que abandona a condição de herdeiro em luto para assumir o fardo de um símbolo. Mas Villeneuve nunca o glorifica. Ao contrário: quanto mais ele se aproxima da liderança messiânica, mais ambíguo se torna. Timothée Chalamet abandona os trejeitos juvenis do primeiro filme e incorpora uma densidade que beira o inquietante — seu olhar progressivamente mais azul não é apenas estética, é sintoma de um corpo que deixou de ser apenas humano e passou a encarnar um ideal coletivo. Mas que tipo de ideal é esse, e a quem ele serve?
A performance de Zendaya, agora em espaço ampliado, serve como contrapeso à figura de Paul. Sua Chani não é só o interesse amoroso do protagonista, mas a consciência crítica do delírio coletivo que o cerca. A tensão entre os dois — mais política que romântica — é uma das forças motrizes do roteiro. Já Austin Butler, como o insano Feyd-Rautha, injeta um grau de brutalidade e teatralidade que contrasta de forma perturbadora com o misticismo disciplinado dos Fremen. Ele não representa apenas a ameaça externa: representa o espelho distorcido de Paul, o que ele poderia se tornar caso o poder fosse buscado sem mediações espirituais.
Nesse universo, onde política, religião e mitologia se fundem, a técnica é mais do que instrumento — ela é linguagem simbólica. A fotografia, de uma aridez hipnótica, não embeleza o deserto: impõe sua presença, sua hostilidade, seu silêncio. A trilha sonora de Hans Zimmer opera como oráculo, antecipando o que as palavras não ousam dizer. Há momentos em que som e imagem parecem ter sido fundidos em laboratório alquímico. O impacto sensorial é de uma solenidade quase ritualística: o espectador não apenas assiste ao filme — ele participa do êxtase, da inquietação, da vertigem.
Mas talvez o que mais surpreenda em “Duna: Parte Dois” seja o modo como o filme lida com a própria ideia de continuidade. Ele se fecha e se abre ao mesmo tempo. Encerrando os arcos propostos anteriormente, planta as sementes de uma nova espiral. Não há sensação de conclusão — há a de precipício. A ingestão da “água da vida”, rito que inaugura a metamorfose final de Paul, representa mais que um marco espiritual: é o momento em que o humano abdica de sua margem de escolha em nome do personagem que precisa desempenhar. É, ao mesmo tempo, coroação e condenação.
Essa dualidade se estende ao conjunto dos personagens. Stilgar, vivido por Javier Bardem, é um dos exemplos mais eloquentes: de líder racional e pragmático, ele se converte em profeta delirante, consumido por uma fé cega. A transformação não é súbita — é gradual, construída com precisão pela narrativa. Da mesma forma, a figura de Lady Jessica (Rebecca Ferguson) torna-se ainda mais complexa, oscilando entre a devoção ao destino do filho e a frieza estratégica das Bene Gesserit. Nenhum personagem permanece estático. Todos são, em alguma medida, corroídos pelo deserto — não apenas como paisagem, mas como metáfora daquilo que devora.
O filme avança, assim, por camadas. O épico está lá, mas nunca gratuito. A política é central, mas sempre contaminada pela superstição. A fé se insinua como força transformadora, mas logo se revela instrumento de controle. Villeneuve, ao invés de apontar respostas, ergue labirintos. Em vez de criar heróis, nos entrega paradoxos. Em vez de prometer salvação, sugere que talvez tudo seja apenas mais um ciclo de dominação reencarnado em nova pele.
“Duna: Parte Dois” não busca agradar — e é exatamente por isso que impressiona. Ao se recusar a oferecer conforto, o filme desafia. Ao romper com as convenções da narrativa tradicional, ele abre espaço para algo mais profundo: uma reflexão sobre a natureza cíclica do poder e sobre o abismo entre crença e realidade. Em seu clímax inquietante, o que fica não é a celebração de um destino cumprido, mas o eco de uma pergunta que ninguém ousa formular em voz alta: e se a profecia nunca foi verdade, mas apenas o disfarce mais eficaz da dominação?
★★★★★★★★★★