É difícil manter os pés no chão quando um filme resolve começar nos tirando o fôlego — não pelo impacto gráfico de uma queda de avião, mas pela maneira como ela nos lança diretamente no vórtice de um dilema humano impossível de ignorar. “O Voo”, dirigido por Robert Zemeckis, não apenas captura com brutal precisão o instante em que uma máquina falha no céu: ele mergulha naquilo que vem depois, quando o herói improvável que a salvou precisa encarar uma verdade que nenhuma caixa-preta é capaz de registrar. A sequência aérea, em que o capitão Whip Whitaker executa uma manobra contraintuitiva e absurda para salvar quase cem vidas, não é o clímax — é o prólogo. Porque o verdadeiro abismo se abre no solo, na lenta erosão de uma identidade construída sobre a ilusão de controle. E nesse espaço entre a destreza e a ruína, Denzel Washington constrói uma performance que não apenas sustenta a narrativa, mas a reconfigura por dentro.
Washington não interpreta Whip como alguém à beira da destruição, mas como alguém cuja destruição já aconteceu — ele apenas a disfarça com óculos escuros, autoconfiança fabricada e a habilidade genuína de pilotar uma aeronave sob pressão extrema. A tensão real não está na tempestade que ameaça o avião, mas na serenidade quase cínica com que Whip conduz a tragédia até seu pouso forçado. Ele sobrevive, salva vidas, e isso deveria bastar. Mas não basta. O filme, em sua inteligência silenciosa, desloca a pergunta: não se trata de saber se ele é culpado ou inocente, mas de compreender o que significa carregar o peso de ser a única coisa entre a morte e a salvação — mesmo quando intoxicado. O que torna essa atuação extraordinária não é seu virtuosismo técnico, mas a recusa em buscar empatia fácil. Em vez disso, Washington sustenta o desconforto, prolonga o silêncio, e nos obriga a assistir, sem fuga possível, ao colapso de um homem funcional.
Esse colapso, no entanto, não é espetacularizado. “O Voo” resiste à tentação de construir um arco de redenção formatado, preferindo explorar os vazios, as interrupções e as recaídas como parte de um processo que não se fecha em fórmulas. Há algo profundamente perturbador na forma como Zemeckis filma a queda moral de Whip: ele não enfatiza o abismo, apenas remove lentamente os andaimes que o sustentavam. O personagem não se desintegra por falta de amor, de fé ou de oportunidade — ele implode porque o autoengano já se tornou parte intrínseca do seu método de sobrevivência. Em meio a isso, personagens como o advogado interpretado por Don Cheadle e o fornecedor de drogas vivido por John Goodman orbitam Whip como figuras ambíguas — nem apoio, nem ameaça, mas engrenagens de uma engrenagem que gira sem freios. O humor pontual de Goodman, em especial, desloca o tom e incomoda, lembrando que, mesmo no desastre, a vida segue com sua grotesca normalidade.
Zemeckis, ao retornar ao cinema de ação real após mais de uma década imerso em animações digitais, demonstra um domínio surpreendente de escala e ambiguidade. A cena do acidente, um prodígio técnico, não é um exercício de pirotecnia, mas um espelho da narrativa: invertida, instável e inesperadamente lúcida. Ao mesmo tempo, o diretor sabe que o verdadeiro desastre acontece em ritmo lento. Quando Whip se refugia na casa de infância, despeja o álcool e tenta recomeçar, não há trilha redentora ou iluminação simbólica. Há apenas o som seco das garrafas sendo descartadas e o silêncio das decisões que não se sustentam sozinhas. A presença de Nicole (Kelly Reilly), mulher marcada por seus próprios fantasmas, não age como redenção romântica, mas como uma interrogação moral: é possível estender a mão a alguém que insiste em permanecer no fundo?
No ápice da tensão — uma audiência pública que definirá o destino de Whip —, Zemeckis remove todos os excessos e foca apenas no rosto de Washington. É ali, nesse plano seco, que o filme revela sua grandeza. Não se trata mais de provar heroísmo ou inocência, mas de encarar a última fronteira de si mesmo. Quando Whip hesita, quando a voz falha, quando a verdade finalmente rompe a couraça, não há catarse — há desconcerto. E é esse desconcerto que eleva o filme muito além de um drama sobre vício ou julgamento. “O Voo” não busca absolvições, e talvez por isso incomode tanto. Não resta uma lição reconfortante, mas uma pergunta em suspensão: quem somos quando ninguém mais está olhando — nem mesmo Deus, cujo templo, aliás, foi atingido pelo avião? O que permanece, inescapável, é o olhar de Whip. E nem mesmo o mais avançado efeito digital seria capaz de simular o que ele carrega.
★★★★★★★★★★