Na superfície, “Retorno da Lenda” se inscreve na tradição dos faroestes clássicos, com seus tiroteios, paisagens áridas e códigos morais inegociáveis. Mas, logo nos primeiros minutos, o filme traça uma linha de ruptura que o distancia da nostalgia fácil e o aproxima de algo mais denso, mais dissonante. O protagonista interpretado por Tim Blake Nelson não apenas carrega um rifle e uma expressão endurecida: ele carrega um passado que se infiltra em cada gesto, cada silêncio, cada recusa em olhar o filho nos olhos. Sua atuação, marcada por um cansaço irremovível e uma dor que não pede explicação, reconfigura o arquétipo do herói silencioso. Nelson, cujo talento já havia encontrado guarida em personagens caricaturais de interior, depura aqui todos os excessos e entrega uma performance que não busca atenção, mas a impõe. A exaustão estampada em seu rosto não é mera composição; é a manifestação física de uma vida inteira tentando se esconder de si mesma.
A aridez do território de Oklahoma em 1906, com suas colinas sem testemunhas e sua terra infértil, não apenas ambienta a narrativa — ela impõe um regime existencial aos personagens. Henry e seu filho Wyatt vivem isolados em uma propriedade modesta, onde a rotina se repete como penitência. O garoto, impaciente com o confinamento e com as regras de um pai que o impede de sequer manusear uma arma, representa a fricção entre uma juventude faminta por movimento e um adulto forjado no trauma. O ressentimento de Wyatt não se resume a discordâncias domésticas: ele vê no pai um espectro — alguém que se apagou antes do tempo. Mas a insistência de Henry em mantê-lo à margem da violência não é fraqueza, e sim o esforço último de um homem para conter o ciclo que o destruiu. O que o filho percebe como covardia é, na verdade, uma tentativa silenciosa de redenção.
Essa tentativa começa a ruir com a chegada de um homem ferido, encontrado por Henry nas margens de um riacho, ao lado de uma sacola de dinheiro e de um distintivo que mais confunde do que explica. O forasteiro, Curry, diz estar fugindo de um falso xerife chamado Ketchum — uma figura de sadismo calculado, encarnada por Stephen Dorff com uma precisão perturbadora. O que se segue é uma coreografia lenta de suspeitas, contradições e preparação para um confronto inevitável. A presença de Curry desencadeia, no espectador, uma desconfiança que espelha a de Henry: algo naquele homem não se encaixa, assim como algo em Henry começa a desencaixar-se dele mesmo. O gesto de trazer Curry para casa, amarrá-lo à cama e, mesmo assim, cuidar de seus ferimentos, revela a complexidade de um personagem em fratura — alguém que deseja paz, mas já não sabe onde ela habita.
Com o tempo, o que parecia um conflito externo se revela como espelho de um conflito interno. A ameaça representada por Ketchum e seus homens não é apenas física — ela convoca em Henry tudo aquilo que ele enterrou sob a fachada de um fazendeiro recluso. A narrativa se adensa à medida que descobrimos que ele não é apenas hábil em esconder rastros ou manusear armas com precisão: ele conhece, intimamente, os códigos da violência e sabe dançar com ela com a frieza de quem já o fez muitas vezes. É nesse momento que “Retorno da Lenda” assume sua potência. Não se trata de uma jornada de transformação, mas de revelação. Henry não se torna outra coisa — ele revela aquilo que sempre foi. E essa revelação não é feita com fanfarras, mas com uma sucessão de escolhas mínimas, sussurradas, como se cada bala disparada fosse menos um ato de defesa e mais um lembrete de quem ele tentou não ser.
A virada que transforma Henry de espectro passivo em força letal não busca surpreender pelo efeito, mas pela lógica interna. Quando Wyatt o acusa, em meio ao desespero, de ser um “velho inútil”, há ali uma fratura emocional que transcende a cena: é o peso do julgamento filial recaindo sobre alguém que tentou proteger sem confessar. E é justamente essa acusação que abre caminho para a revelação de sua verdadeira identidade, que não será mencionada aqui, mas que altera retroativamente a percepção de tudo que vimos. A direção de Ponciroli, contida e rigorosa, se recusa ao exibicionismo. Cada plano tem propósito, cada silêncio tem densidade. Até mesmo os momentos de humor macabro — como o corpo descartado aos porcos — funcionam como comentários sobre o absurdo da sobrevivência naquele território moralmente instável. O filme recusa grandiloquência, preferindo o poder das pequenas decisões narrativas que, somadas, constroem uma experiência de impacto.
Se há um clímax no filme, ele não se dá no confronto físico — embora este seja coreografado com precisão cirúrgica —, mas na constatação de que Henry jamais deixou de ser um instrumento da história que tentou enterrar. A jornada não é sobre escapar, e sim sobre reconhecer que a fuga foi, desde o início, uma ilusão. É aí que “Retorno da Lenda” se diferencia da maioria dos faroestes: não há promessa de reinício, apenas a compreensão de que algumas identidades são irreversíveis. A atuação de Nelson, nesse contexto, atinge um grau de autenticidade raro. Ele não interpreta um personagem: ele o sustenta como se carregasse seus ossos. É uma entrega que transforma um caipira maltrapilho em figura mítica — não pela idealização, mas por ser brutalmente humano. O faroeste não é apenas um gênero: é um território psíquico onde culpa, violência e afeto disputam cada milímetro de espaço. E Nelson, com olhos cansados e pulso firme, é seu cartógrafo mais improvável — e mais legítimo.
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