Pegue o seu calmante, terror na Netflix vai despertar todas as suas paranoias e neuroses Divulgação / Point Productions

Pegue o seu calmante, terror na Netflix vai despertar todas as suas paranoias e neuroses

Não há gritos no corredor. Nenhuma criatura rasteja sob a cama. Ainda assim, o medo que “Bebê Ruy”provoca é daqueles que permanecem — não por aquilo que revela, mas pelo que sussurra entre os silêncios de uma mulher em colapso. A protagonista, Jo, influenciadora digital recém-parida, vê o nascimento do filho coincidir com o desmoronamento da própria sanidade. A narrativa, ao invés de buscar explicações, opta por esgarçar os limites entre o cotidiano e o delírio, expondo como a rotina aparentemente banal da maternidade pode se transfigurar em um labirinto mental, onde o choro do bebê não é um som, mas uma sentença.

A proposta do filme não se apoia em um enredo tradicional, tampouco em eventos que escalonam de maneira previsível. Ele opta por uma estratégia mais arriscada: infiltrar-se na percepção fragmentada de sua personagem central. Não há, portanto, uma construção linear de paranoia, mas um acúmulo de ruídos, olhares atravessados, choros incessantes e silêncios ensurdecedores que constroem um espaço de alienação gradual. A câmera, ora cúmplice, ora acusadora, recusa qualquer perspectiva segura, arrastando o espectador para o mesmo estado de desorientação que consome Jo. Não há ponto de fuga — apenas o agravamento de uma condição mental que dilui as fronteiras entre o que se vive e o que se imagina.

A psicose pós-parto, ainda hoje pouco compreendida e frequentemente reduzida a tabus ou simplificações grotescas, é abordada aqui com uma dureza que dispensa filtros. Não há glamour na dor, tampouco indulgência. O que se vê é a corrosão da identidade: Jo deixa de ser mulher, de ser filha, de ser esposa — e, sobretudo, de ser si mesma. O filme retrata essa dissolução com uma sobriedade brutal, recusando tanto a empatia fácil quanto o espetáculo emocional. E justamente por evitar fórmulas melodramáticas, a experiência se torna mais incômoda — e, paradoxalmente, mais íntima.

Ainda assim, há tropeços importantes. O roteiro parece ambicionar mais do que consegue sustentar. Ao tentar costurar um comentário sobre as pressões das redes sociais, uma reflexão sobre a solidão materna e ainda elementos de suspense psicológico, acaba sacrificando a consistência narrativa. Figuras coadjuvantes entram em cena como promessas de desenvolvimento — entre elas, personagens vividos por Kit Harington e Jayne Atkinson — mas logo são deixadas à deriva, funcionando apenas como sombras orbitando o universo mental de Jo. O filme flerta com múltiplas direções, mas não se compromete com nenhuma até o fim, o que fragiliza sua espinha dorsal.

Outro ponto de tensão é a atuação central. Noémie Merlant, embora entregue momentos de notável densidade emocional, não consegue sustentar a personagem com a constância exigida. Há instantes em que seu olhar comunica mais do que qualquer palavra, mas essa potência é intermitente, falhando em compor um arco que mantenha a angústia latente do início ao fim. A instabilidade interpretativa, somada à hesitação da direção em aprofundar o entorno da protagonista, acaba restringindo a experiência a um mergulho raso em águas turvas — quando o que se esperava era afogamento.

A ambientação aposta em uma paleta soturna, mas sua estética, embora bem intencionada, carece de um simbolismo mais incisivo. A opressão sugerida pelas sombras, pelas composições enclausuradas, pelo isolamento dos cenários — tudo isso sugere densidade, mas raramente a alcança. Fica-se com a impressão de que a atmosfera trabalha para o roteiro, mas o roteiro não retribui o esforço da atmosfera. Há momentos em que o filme parece à beira de tocar algo verdadeiramente abissal, mas recua, como se temesse atravessar o espelho que ele mesmo construiu.

A questão das redes sociais, por exemplo, é esboçada como pano de fundo, mas não encontra ressonância dramática suficiente para se integrar de forma orgânica à trajetória da protagonista. A exposição constante, os julgamentos silenciosos dos seguidores, a necessidade de performar uma maternidade plena — todos são elementos ricos, mas tratados de maneira lateral, como se o filme hesitasse entre o retrato psicológico e a crítica cultural. Essa indecisão contamina a narrativa, que parece não saber se quer ser um retrato íntimo ou uma alegoria mais ampla.

Mas negar o valor do filme seria desconsiderar o que ele consegue realizar com honestidade: uma representação desconfortável, quase insuportável, do que significa enlouquecer silenciosamente em meio a fraldas, mamadeiras e expectativas esmagadoras. Há um tipo muito específico de horror que nasce da maternidade forçada a corresponder a mitos — o de perceber-se inadequada diante de um ideal inatingível. E é nessa zona de atrito, entre o que se espera de uma mãe e o que ela consegue oferecer, que o filme finca suas raízes mais perturbadoras.

O choro do bebê, repetido como um mantra punitivo, a ausência de sono, o isolamento dentro da própria casa — são elementos tratados não como acessórios dramáticos, mas como gatilhos de dissolução psíquica. E, nesse aspecto, o filme é preciso ao desmontar a idealização da maternidade como um território naturalmente acolhedor. O que se vê é o contrário: um espaço de culpa, de inadequação, de exaustão emocional. Um campo minado onde cada passo pode significar o fim da estabilidade.

Ao expor sem pudor uma experiência que muitas mulheres vivem à margem da compreensão social, o filme desafia o espectador a confrontar seus próprios preconceitos e idealizações. Não é fácil de assistir — e tampouco deveria ser. Sua força reside justamente na recusa em suavizar a dor que retrata. Ainda que tropece em sua execução, oferece algo raro: um olhar cru sobre uma das faces mais negligenciadas da experiência materna. E por isso, mesmo em sua imperfeição, permanece como um lembrete incômodo do quão solitária e brutal pode ser a travessia de uma mulher entre o parto e o abismo.

Filme: Bebê Ruby
Diretor: Bess Wohl
Ano: 2022
Gênero: Drama/Melodrama/Psicológico/Terror Psicológico
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★