Num cenário em que thrillers se limitam à coreografia de tiros, explosões e efeitos previsíveis, “O Fugitivo” avança como um corpo estranho — não por negar o espetáculo, mas por reorganizá-lo em torno de uma tensão ética que compromete cada cena com algo maior que a fuga. A perseguição do Dr. Richard Kimble, acusado do assassinato da esposa e lançado à condição de proscrito pela falência institucional da justiça, não é apenas a espinha dorsal da narrativa; é o catalisador de uma discussão inquietante sobre a relação entre verdade, legalidade e instinto de sobrevivência. O filme de Andrew Davis não se estrutura em cima de reviravoltas ocasionais, mas sim sobre o aprofundamento sistemático daquilo que, a princípio, parece uma trama elementar. Ele escancara, sem aviso, o quanto pode haver de absurdo e de kafkiano no funcionamento de instituições que deveriam proteger o inocente — e que, em vez disso, o moem com frieza silenciosa.
A abertura — que intercala fragmentos de um jantar beneficente com flashes do crime, fundindo imagens em preto e branco com cenas coloridas — antecipa mais do que um crime mal resolvido: ela estrutura uma linguagem de colapso. Antes mesmo que os créditos cessem, já está exposta a premissa brutal — a justiça falha não por ausência de leis, mas por excesso de indiferença. É nesse vácuo que Ford esculpe um Kimble vulnerável, cuja humanidade sobrevive não nos grandes gestos, mas na contenção. A sequência do acidente de trem, realizada com aparato técnico real, simboliza essa quebra de eixo: o trem colide não só com o ônibus prisional, mas com o pacto social que até ali mantinha Kimble preso à ilusão de que provar sua inocência bastaria. O espectador, como ele, é arrancado da passividade e arrastado a um território onde a verdade vale menos que a aparência da lógica jurídica.
A relação entre Kimble e o Delegado Sam Gerard, no entanto, recusa a simplicidade do bem contra o mal. Gerard, interpretado por Tommy Lee Jones em estado de precisão máxima, não é o vilão clássico — é a encarnação da lei em seu estado mais obstinado, um homem cuja devoção à captura supera a empatia. E é justamente por não ser corrompido, mas inflexivelmente funcional, que ele se torna perigoso. Há um momento decisivo que cristaliza essa ambiguidade: quando Kimble brada “Eu não matei minha esposa”, Gerard responde “Eu não me importo” — não por crueldade, mas porque, para ele, o sistema é um jogo de regras, não de convicções morais. A tensão entre eles escapa ao binarismo e se instala como confronto filosófico, explorado com inteligência narrativa ao longo de toda a estrutura. A caça não é apenas física: é uma colisão de paradigmas.
Esse choque é amplificado pelo uso dos espaços urbanos como elementos narrativos. Chicago não funciona como pano de fundo ilustrativo, mas como um corpo vivo, hostil e fragmentado — dos esgotos que evocam “Os Miseráveis” ao vertiginoso salto da represa, que reconfigura o clássico wagneriano da queda e renascimento. Davis entende que ação sem ancoragem espacial é ruído, e por isso cada perseguição obedece a uma lógica interna: há uma cartografia do medo e da persistência desenhada em cada trajeto. A montagem, assinada por seis editores, garante que essa coerência não se perca nem nos momentos mais caóticos. Já a trilha sonora de James Newton Howard não apenas acompanha, mas comenta emocionalmente a trajetória, com acordes que oscilam entre o lamento contido e a tensão suspensa — sugerindo que o filme nunca confia totalmente na redenção, mesmo quando se aproxima dela.
A grandeza de “O Fugitivo” está, em última instância, na sua recusa em oferecer conforto. Não há alívio catártico, tampouco um triunfo completo. O que há é uma reorganização cuidadosa de forças, onde o espectador se vê forçado a repensar onde exatamente está o centro de gravidade moral da narrativa. Davis, que vinha de produções com Chuck Norris e Steven Seagal, alcança aqui um ponto de inflexão em sua carreira — não por abandonar os códigos do gênero, mas por sofisticá-los a tal ponto que o próprio gênero parece se redescobrir. A presença crua de Ford, o rigor cênico de Jones, a fotografia saturada e o roteiro sem gorduras convergem para algo raro: um filme que respira com intensidade e pensa com precisão. “O Fugitivo” não apenas escapa da prisão física — ele rompe os limites da previsibilidade e reconquista o espaço do cinema como território de risco e inteligência.
★★★★★★★★★★