Durante décadas, o faroeste alimentou uma ilusão compartilhada: a de que o Velho Oeste era povoado quase exclusivamente por homens brancos, silenciosos e armados, sempre prontos para resolver disputas com pólvora e estoicismo. O que “Vingança e Castigo” faz, de forma deliberada e inventiva, é intervir nessa narrativa como quem puxa o freio de uma locomotiva fora de controle. Jeymes Samuel, em sua estreia com longas-metragens, não apenas subverte os códigos visuais e temáticos do gênero: ele implanta ali uma contra-história pulsante, povoada por figuras negras que a tradição cinematográfica insistiu em marginalizar — ou apagar. E ele o faz com um senso estético explosivo, uma irreverência consciente e uma recusa sistemática à submissão didática. O resultado não é um ajuste de contas histórico, mas uma reconfiguração radical do que pode ser um faroeste quando os corpos que o protagonizam não precisam mais pedir licença para ocupar a tela.
Essa operação de resgate, no entanto, não se dá por vias convencionais. Samuel compreende que repetir a gramática do realismo seria, paradoxalmente, um gesto de submissão aos moldes narrativos de quem historicamente excluiu. Por isso, em vez de um drama histórico, ele constrói uma fábula estilizada e autoconsciente, que mistura duelos milimetricamente coreografados com explosões gráficas de violência e uma trilha sonora marcada por reggae, soul e highlife. O Velho Oeste de “Vingança e Castigo” não se pretende autêntico: pretende ser irrefreável, frenético e visualmente inesquecível. Samuel empunha a câmera como se fosse um revólver de múltiplos calibres, disparando cenas que alternam o cômico, o simbólico e o brutal com a segurança de quem sabe que cada escolha estética é, também, uma escolha política. E nesse território onde se confunde tempo histórico com desejo de representação, o filme instaura uma nova mitologia — menos preocupada em reconstituir o passado do que em reconfigurar o imaginário.
A história, em seu núcleo, parte de uma ferida inaugural: o assassinato brutal dos pais de Nat Love, que, ainda menino, é marcado no rosto por Rufus Buck, o vilão que retornará anos depois como antagonista pleno. Esse gesto simbólico — uma cruz talhada com lâmina na carne da infância — opera como catalisador da jornada de vingança que organiza a estrutura narrativa. Contudo, essa vingança não é puramente individual. É uma metáfora dramatizada da tentativa de recuperar aquilo que foi usurpado: protagonismo, voz, agência. Nat (vivido com intensidade por Jonathan Majors) não está só: ao seu lado estão Jim Beckwourth, Cuffee, Bill Pickett e Stagecoach Mary, uma formação que opera como microcosmo de um Velho Oeste alternativo, onde a violência não redime, mas compõe. Do outro lado, Rufus (Idris Elba) reúne Trudy Smith e Cherokee Bill — personagens que, em qualquer outro filme, seriam relegados ao papel de ameaça genérica, mas aqui impõem complexidade e domínio da cena. A tensão entre os dois grupos é menos sobre bem e mal do que sobre visões divergentes de justiça e sobrevivência em um território hostil à existência negra.
O que Samuel faz, então, é deslocar o eixo da tensão. Não há hereges indígenas para serem aniquilados, nem colonos brancos para serem salvos. O verdadeiro conflito se dá entre figuras negras com passados feridos, estratégias diferentes e percepções díspares sobre liberdade e reparação. Isso exige do espectador uma suspensão do automatismo moral típico do gênero. A brutalidade de Rufus Buck, por exemplo, coexiste com seu desejo de criar uma comunidade autônoma para negros libertos — um gesto que, embora instrumentalizado pela violência, denuncia o vácuo de alternativas reais diante de uma estrutura de dominação branca sempre à espreita. Ao colocar Love e Buck em rota de colisão, o filme não propõe uma catarse de justiça, mas uma colisão entre fantasias divergentes sobre poder e emancipação. E se o desfecho opta por uma revelação que reconfigura a trajetória de Buck, talvez o faça não para humanizá-lo, mas para sublinhar a espessura trágica da disputa: mesmo os antagonistas de Samuel carregam legados que o cinema tradicional jamais se dispôs a escutar.
Não há, no entanto, pretensão de neutralidade estética. Cada escolha visual de “Vingança e Castigo” é intencionalmente exagerada, como se dissesse: “se o faroeste sempre foi espetáculo, que ao menos agora o espetáculo nos pertença”. E isso se aplica às coreografias de tiroteios, às cidades cenográficas meticulosamente estilizadas, aos diálogos que oscilam entre a sabedoria ancestral e o sarcasmo moderno. O pastiche não é uma paródia, mas uma estratégia de apropriação. Ao tensionar a forma do faroeste até o limite, Samuel desestabiliza suas estruturas e as reinscreve a partir de outro ponto de vista. O filme, inclusive, lida com a questão racial de forma oblíqua e espirituosa: na cena em que um homem branco ameaça pronunciar a palavra com N e é prontamente executado, não há espaço para discursos explicativos. Há, sim, um corte seco, uma piada afiada e a afirmação tácita de que não há terreno neutro nessa disputa simbólica.
Ainda assim, seria ingênuo ignorar os momentos em que a energia estilística do filme parece ameaçar sua própria integridade narrativa. Há uma recorrência de confrontos cuja repetição dilui o impacto, e o romance entre Nat e Mary — que poderia oferecer uma dimensão emocional mais densa — nunca chega a amadurecer. Mas mesmo essas fissuras revelam algo: o compromisso de Samuel não está em produzir um épico harmonioso, mas uma colagem vibrante de fraturas históricas, desejos represados e possibilidades de reimaginação. O que está em jogo é menos a verossimilhança e mais a afirmação de que o faroeste pode ser, finalmente, um território para múltiplas subjetividades negras — complexas, falhas, grandiosas e inteiras.
Em “Vingança e Castigo”, não há redenção fácil nem nostalgia romântica. O que existe é uma tentativa ousada de invadir o espaço simbólico do cinema com outras vozes, outras estéticas, outras formas de narrar a experiência negra na fronteira. Jeymes Samuel, como um pistoleiro do século 21, não pede passagem: ele atira para abrir caminho. Seu filme não nos oferece a verdade histórica — mas nos dá algo que, por vezes, é ainda mais raro no audiovisual: a chance de imaginar, com potência estética e lucidez política, o que poderia ter sido, e o que ainda pode ser.
★★★★★★★★★★