Considerado o melhor suspense de 2024, filme com Hugh Grant está sob demanda no Prime Video Divulgação / A24

Considerado o melhor suspense de 2024, filme com Hugh Grant está sob demanda no Prime Video

Scott Beck e Bryan Woods constroem em “Herege” um campo minado de ambiguidade e sedução, onde a fé deixa de ser um abrigo e passa a operar como cárcere. O filme recusa a estridência dos sustos fáceis para investir numa inquietação de outra ordem — mais filosófica que visceral, mais perversa do que espetaculosa. Em vez de recorrer ao aparato convencional do horror, “Herege” opta por tensionar o invisível: aquilo que paira entre a convicção e o delírio, entre a autoridade e a crença, entre o consentimento e a dominação.

A porta que se abre no primeiro ato — para acolher duas missionárias mórmons em missão proselitista — não é uma simples entrada em um espaço físico, mas o primeiro passo rumo a uma estrutura labiríntica onde cada palavra dita parece esconder um feitiço. É senhor Reed, interpretado com precisão inquietante por Hugh Grant, quem as convida para dentro — e a partir dali, o filme fecha o cerco. A casa, que à primeira vista remete ao conforto intelectual de um anfitrião eloquente, logo se revela um dispositivo de reprogramação — não pelas grades, mas pela retórica.

A performance de Grant desconstrói a imagem de galã espirituoso que o consagrou, para dar lugar a um manipulador que fascina justamente por sua calma. Ele não agride: argumenta. Não ameaça: propõe. Não grita: interroga. É dessa contenção calculada que “Herege” extrai sua tensão mais densa — aquela que não explode, mas corrói. O personagem fala como quem está ensinando, mas ouve como quem já decidiu. E essa dissimulação constante — a pose de mentor que esconde o algoz — é o que permite que ele instale a dominação sem jamais declarar guerra.

A estrutura narrativa adota a lógica do sermão: tudo é metáfora, tudo parece ter uma intenção superior. Mas o espectador atento percebe que a lógica é circular, e as “escolhas” oferecidas às jovens missionárias são apenas bifurcações ilusórias que retornam sempre ao mesmo núcleo de controle. O terror, aqui, não é o da punição corporal, mas o da erosão interior — a lenta corrosão da capacidade de discernir onde termina o livre-arbítrio e onde começa a doutrina disfarçada de alternativa.

O roteiro é astuto ao construir Reed como uma alegoria do poder religioso institucionalizado: aquele que fabrica milagres para legitimar seu monopólio espiritual. Há uma crueldade silenciosa no modo como ele “seleciona” profetas, não por sua fé, mas por sua utilidade simbólica. Ele não converte — formata. Não guia — molda. E essa fabricação de fé sob medida é o que expõe o projeto autoritário de sua seita caseira: um regime de crenças em que até o sofrimento é coreografado.

O desempenho de Sophie Thatcher como Irmã Barnes é talvez a chave para o desmonte desse sistema. Sua trajetória dentro da casa não é de conversão nem de fuga — é de inversão. Ela assimila as regras do jogo e as devolve contra o mestre. Sua ressurreição, tanto física quanto simbólica, não é um milagre, mas um golpe de retorno. Ao ocupar o papel de mártir que Reed havia escrito para ela, mas com outra entonação, Barnes desorganiza a encenação. E quando se levanta da morte e reconfigura a narrativa, o que ela faz é um ato de insurgência hermenêutica: reescreve, com o próprio corpo, os dogmas que lhe haviam sido impostos.

Já Irmã Paxton (Chloe East), move-se por outro vetor: o da revelação progressiva. Se Barnes é a dissidência ativa, Paxton é o despertar lento. Sua travessia é marcada pelo olhar — ela assiste, observa, hesita, mas jamais se entrega por completo. Quando finalmente escapa do porão — atravessando não apenas o espaço físico da casa, mas séculos de silenciamento religioso —, carrega consigo um gesto revolucionário: não a negação da fé, mas a recusa da mediação masculina como seu canal exclusivo. Sua saída é mais do que fuga: é refundação.

Ainda que alguns trechos do terceiro ato careçam de maior refinamento simbólico — como a conveniência narrativa da personagem ferida que sobrevive o bastante para consumar um contra-ritual, ou a ambiguidade um tanto oca da ideia de “entrega voluntária” —, esses deslizes não enfraquecem o núcleo do filme. “Herege” permanece sólido naquilo que propõe: um exame sobre o modo como a fé pode ser instrumentalizada como tecnologia de poder, e como a linguagem é, muitas vezes, a corrente mais eficiente da prisão.

Não há redenção externa, nem conforto metafísico. O que resta é uma provocação duradoura: quem controla o texto controla também os significados. E, portanto, a liberdade só começa quando se aprende a reescrever. Quando Irmã Paxton encontra, no final, a borboleta — símbolo nada sutil da mutação — o gesto não é uma promessa de salvação, mas um lembrete incômodo: toda metamorfose implica em destruição anterior. Nada se transforma sem antes colapsar.

Filme: Herege
Diretor: Scott Beck e Bryan Woods
Ano: 2024
Gênero: Terror/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★