“O Ilusionista”, dirigido por Neil Burger, é menos uma narrativa linear e mais uma performance elaborada, construída sobre camadas que, embora visíveis, não se deixam decifrar de imediato. Inspirado livremente no conto de Steven Millhauser, o filme acontece como um espetáculo de prestidigitação: convoca a atenção, distrai o olhar e, no instante final, revela o que esteve à vista o tempo todo, disfarçado pelo ritmo, pela atmosfera e pelo silêncio das entrelinhas.
Ao ambientar a trama na Viena do século 19, Burger não opta apenas por uma moldura histórica — ele cria uma atmosfera onde política, espetáculo e manipulação caminham juntos. Não há aqui uma reconstituição de época no sentido convencional, mas uma evocação fantasmagórica de um tempo em que o império começava a ruir e, com ele, os pilares de uma sociedade dividida entre razão e encantamento. O cenário não sustenta apenas os personagens; ele os devora lentamente, como um teatro no qual as regras são tão rígidas que a única possibilidade de liberdade está na simulação.
Nesse espaço sufocante, movem-se Eisenheim (Edward Norton) e Sophie (Jessica Biel), figuras que orbitam entre o amor e a impossibilidade, entre o gesto real e a encenação necessária. A relação entre os dois foge às convenções do romance tradicional. É um elo tenso, mantido menos por diálogos do que por olhares e pausas, como se o afeto precisasse ser constantemente codificado para sobreviver à vigilância dos outros. Norton, com sua contenção quase mineral, esculpe um personagem cuja força está justamente na recusa ao excesso. Biel, surpreendentemente afinada com essa lógica, constrói uma figura trágica, não porque sofre, mas porque compreende demais — e cedo demais — o jogo ao qual foi submetida.
O que diferencia “O Ilusionista” de tantos dramas de época com verniz de mistério é sua negação ao didatismo. Burger não explica — sugere. A narrativa avança como um truque em três atos: primeiro, o cotidiano; depois, a transformação; por fim, o desfecho que exige do espectador uma mudança de perspectiva. Há algo de ensaio metalinguístico em sua construção: ao tratar da ilusão, o filme também reflete sobre a própria arte de iludir, seja pelo teatro, pelo amor ou pelo poder. Cada aparição mágica de Eisenheim é também um comentário sobre o que está fora do palco — o controle das massas, a manipulação institucional, a força do encantamento como resistência.
Nesse tabuleiro, a figura mais ambígua é o inspetor Uhl (Paul Giamatti), que encarna a tensão entre a obediência às estruturas e o fascínio pelaquilo que as subverte. Diferente do antagonista tradicional, ele não se opõe ao protagonista por ideologia ou desejo de dominação, mas por estar preso à lógica do sistema que serve. Sua trajetória é uma lenta metamorfose: o policial que se transforma em cúmplice não por rebeldia, mas por lucidez. Giamatti oferece uma das interpretações mais complexas do filme, sustentando o dilema entre ética e admiração com uma sutileza que evita julgamentos fáceis.
Rufus Sewell, como o príncipe Leopold, desempenha o papel do poder que não tolera ambiguidades. Seu personagem representa mais do que um vilão aristocrático: é a encarnação do Estado que exige transparência absoluta, que não admite a existência de zonas obscuras ou inexplicáveis. É nesse ponto que o filme atinge sua crítica mais incisiva: o que está em jogo não é apenas o amor impossível ou o mistério dos truques, mas a disputa entre controle e imaginação. Eisenheim não ameaça o príncipe porque ama Sophie, mas porque desafia a lógica que sustenta seu domínio — ele propõe que nem tudo pode ser exposto, fiscalizado, dominado.
A estética escolhida por Burger potencializa esse embate. A fotografia recorre a filtros que imitam o visual do cinema antigo, como se todo o filme se passasse dentro da memória de uma máquina de projeção. Os closes circulares que encerram algumas cenas, as luzes difusas e os enquadramentos simétricos evocam uma linguagem anterior ao próprio cinema narrativo — como se o olhar fosse convidado a reaprender a ver. A trilha sonora hipnótica de Philip Glass intensifica essa experiência sensorial, dilatando o tempo e descolando o filme da realidade objetiva. Estamos num território em que o que importa não é o que aconteceu, mas o que se acredita ter visto.
O clímax do filme — que poderia facilmente cair no exagero — é conduzido com uma cadência quase cerimonial. A repetição de certas imagens, os pequenos excessos formais, tudo parece desenhado para reforçar o pacto do espectador com o ilusionismo proposto. A revelação final, em vez de frustrar ou surpreender por um golpe abrupto, retroage sobre tudo o que se viu, redesenhando os contornos do passado com um traço mais fino. Não é uma reviravolta no sentido convencional, mas uma convocação à releitura. E é nessa releitura que o filme se consolida como experiência: não como enigma resolvido, mas como ficção que continua reverberando depois que as luzes se apagam.
No limite entre o fim e o que se acredita ser o fim — resta uma troca de olhares entre Eisenheim e Uhl. Não é apenas o encerramento de uma trama, mas a assinatura de um pacto silencioso: entre o artista e o mediador, entre o que escapa e o que compreende. Esse instante contém, condensado, o que talvez seja o gesto mais generoso do filme: admitir que a ilusão só funciona quando há cumplicidade. O truque não engana — ele depende da disposição do outro em ser encantado.
“O Ilusionista” não se limita a entreter. É um lembrete do poder do olhar, da importância de manter zonas de mistério em um mundo cada vez mais transparente. E, talvez, seja isso que o cinema mais precisa hoje: não explicações, mas espaços de suspensão onde o impossível continua sendo uma possibilidade legítima.
★★★★★★★★★★