A ficção de Pedro Almodóvar nunca pretendeu ser discreta — mas em “O Quarto ao Lado”, seu primeiro longa-metragem em inglês, o estrondo se esconde na delicadeza, e o drama se constrói não a partir do excesso, mas da contenção. O que parecia ser uma incursão intimista no território do luto revela-se, aos poucos, uma orquestração meticulosa sobre a arte de permanecer ao lado de alguém quando a linguagem se torna insuficiente. Ingrid (Julianne Moore), escritora marcada por uma vida de deslocamentos e silêncios, reencontra Martha (Tilda Swinton), jornalista consumida por uma doença terminal e por uma biografia repleta de zonas de sombra. O reencontro se dá não para que resgatem uma história comum, mas para que atravessem, com a precisão de quem sabe que não haverá retorno, a última travessia juntas. Almodóvar não filma a morte: ele filma o gesto de acompanhar alguém até seu limite. E esse gesto, na superfície singelo, carrega a subversão radical de tudo aquilo que se espera da amizade em tempos de hiperconexão e ausências emocionais.
O filme assume a forma de um sussurro que se impõe como grito, mas jamais por meio do escândalo. Em vez de construir grandes arcos dramáticos, Almodóvar articula seu enredo com a lógica dos detalhes: um olhar que hesita, uma mala que se fecha, um vinho que se compartilha sem brindes. Ao evitar o caminho do clímax convencional, ele confronta o espectador com a dimensão real das despedidas — não aquelas performadas em discursos, mas aquelas que se concretizam no cotidiano esvaziado de espetáculos. A escolha de adaptar livremente o romance “What Are You Going Through”, de Sigrid Nunez, reflete um interesse menos pela trama original e mais pelo silêncio que a atravessa. O que Almodóvar persegue não é a história, mas a pausa entre as histórias: o intervalo que separa quem parte de quem permanece. E nesse intervalo, é a presença — simples, integral, irredutível — que se torna o mais potente dos atos.
A dupla de protagonistas sustenta essa arquitetura com uma intensidade que rejeita qualquer gesto gratuito. Julianne Moore e Tilda Swinton, sob a direção contida de Almodóvar, rejeitam a expressividade teatral em favor de um minimalismo emocional devastador. Ingrid observa, hesita, acompanha. Martha decide, mas não impõe. Ambas constroem juntas uma ética do cuidado que não se fundamenta em sacrifícios ou heroísmos, mas na escuta e no consentimento silencioso. A presença de Damian (John Turturro), ex-companheiro de ambas, oferece um contraponto: um homem que, tomado pelo ceticismo ambiental e pelas cinzas do que já foi entusiasmo, parece incapaz de enxergar qualquer beleza persistente no mundo. É nesse contraste que Almodóvar tensiona uma das teses subterrâneas do filme: quem já decidiu partir, muitas vezes, vê com mais clareza o que ainda há de vital à sua volta — como a neve fora de época que cai devagar, indiferente, sobre vivos e mortos.
Formalmente, o longa não abre mão das marcas visuais do cineasta, mas as redistribui com maturidade estética. A paleta de cores — há muito um território emblemático da linguagem almodovariana — se mantém presente, mas não grita; ela sugere, contrasta, amplia. Os ambientes que cercam Ingrid e Martha não competem com a dor, mas a moldam com elegância: o azul esmaecido do apartamento improvisado, o verde pulsante da varanda onde a vida tenta resistir à ausência que se aproxima. Tudo é coreografado com uma harmonia precisa, como se a composição dos objetos, das roupas e da luz estivesse à serviço de uma cartografia emocional silenciosa. A figurinista Bina Daigeler orquestra esse universo com a consciência de que, em um filme como esse, o cenário não apenas ambienta — ele comenta, atravessa, transforma.
Se parte da crítica apontou certa frieza na condução do enredo, o que se revela é menos uma limitação e mais uma opção estética deliberada. Almodóvar recusa o sentimentalismo explícito para alcançar um tipo de emoção que não precisa se justificar com lágrimas. Ele sugere, ao invés de afirmar; contorna, ao invés de martelar. É uma escolha que exige mais do espectador, pois não oferece atalhos emocionais nem respostas fáceis. Aqui, a pergunta fundamental — “o que você está passando?” — ecoa mesmo quando não é dita, e exige mais do que empatia: exige escuta real, presença ativa, abandono do conforto. E talvez seja esse o verdadeiro ponto de ruptura: não é sobre morrer dignamente, mas sobre morrer amparado, com alguém disposto a compartilhar a vertigem final sem a tentação de resgatar, consolar ou corrigir o irreversível.
Na contramão do espetáculo, “O Quarto ao Lado” constrói um cinema da intimidade radical, onde a ética e a estética se fundem em um mesmo gesto: estar. O título não é apenas uma metáfora — ele é um programa moral. Ser o que está “no cômodo ao lado” implica escolher a proximidade mesmo diante da impotência. Em um tempo que celebra a eficiência das soluções rápidas, Almodóvar opta por dramatizar a beleza da inutilidade amorosa: estar lá não para resolver, mas para permanecer. Não à toa, a neve citada por Joyce — e retomada com precisão pelo roteiro — adquire aqui uma função quase filosófica: ela cobre tudo de maneira igual, dissolvendo fronteiras entre fim e continuidade, presença e ausência, lembrança e dissolução. E nesse gesto, paradoxalmente silencioso, o filme alcança algo raro: transforma a fragilidade em ato político, e a despedida em uma afirmação de sentido.
★★★★★★★★★★