Papel que deu Oscar para Kieran Culkin foi rejeitado por outro ator e está no Disney+ Divulgação / Topic Studios

Papel que deu Oscar para Kieran Culkin foi rejeitado por outro ator e está no Disney+

Jesse Eisenberg, em seu segundo longa-metragem como diretor, não procura o extraordinário. Ele encontra a essência do humano justamente onde tudo parece imóvel. Em “A Verdadeira Dor”, a narrativa avança como quem pisa em território minado, sondando os silêncios que se acumulam entre gerações, sem jamais romper a delicadeza. O ponto de partida é simples: dois primos embarcam para a Polônia com o intuito de visitar o vilarejo de onde veio a avó, sobrevivente do Holocausto. Mas o que se revela diante da aparente neutralidade do roteiro não é um drama memorial convencional, e sim um inventário daquilo que não se consegue dizer — sobre o passado, o afeto e a pulsação quase imperceptível da perda.

Benji, interpretado com uma vulnerabilidade crua por Kieran Culkin (em papel que Eric Andre afirma ter rejeitado), é o epicentro de uma tensão que não se deixa domesticar. Ele não está apenas em luto pela avó que morreu recentemente; está diante do colapso íntimo que sempre espreitou sua existência. Sua presença destoa do mundo ao redor — como uma nota desafinada num compasso marcado por convenções familiares, como se cada gesto carregasse uma última tentativa de permanecer. A viagem não é uma homenagem. É um ritual de despedida. Seus acessos emocionais diante de ruínas históricas — campos de extermínio, sinagogas destruídas, becos de pedra silenciosa — não se explicam apenas pelo peso hereditário da memória coletiva. Há, em cada reação, um grito existencial de quem já não sabe onde termina a dor herdada e onde começa a própria.

Eisenberg, que também interpreta David — primo de Benji —, evita enquadrar a narrativa num esquema moral binário. David não é apenas o contraponto funcional ao caos de Benji. Ele é a expressão sutil de uma estabilidade sem raízes, de uma normalidade frágil que se sustenta em compromissos que não foram escolhidos, mas aceitos. O contraste entre os dois personagens não serve para definir certo e errado, mas para expor o abismo que separa quem sente demais de quem aprendeu a sobreviver sentindo de menos. O vínculo entre eles não está ameaçado por antagonismos explícitos, e sim por uma constante sensação de desalinho: tentam se alcançar, mas falam idiomas afetivos diferentes. O filme se recusa a traduzir esse ruído. E é justamente por isso que ele ecoa com tanta força.

A mise-en-scène é cuidadosamente calculada para evitar didatismos. A câmera, frequentemente estática, observa mais do que explica. Cada enquadramento funciona como uma pausa, uma espera, um espaço para que a imagem fale o que o roteiro decide silenciar. A fotografia de Michal Dymek aposta no não-dito, sugerindo mais do que ilustrando — como se cada plano fosse a superfície de algo muito mais denso, escondido fora de quadro. A trilha sonora, quase sempre marcada por peças de Chopin, não tem função decorativa: ela tensiona, emoldura o vazio, dá corpo ao que se desfaz. Já a montagem de Robert Nassau permite que o tempo se estique onde é necessário, sem jamais se render à pressa da conclusão. Não há aqui atalhos emocionais.

O filme não investiga apenas os efeitos tardios de um trauma coletivo. Ele mergulha nas brechas que o luto abre dentro das relações ordinárias. Quando se perde alguém que foi âncora afetiva, o que sobra — além do vazio — é a tentativa confusa de reorganizar os afetos que restaram. A morte da avó, nesse sentido, não serve como ponto de partida para homenagens póstumas. Ela deflagra um realinhamento que obriga os vivos a confrontar aquilo que vinha sendo evitado. Eisenberg compreende que o luto é menos uma reação à ausência do outro e mais uma confrontação com aquilo que em nós também desaparece quando o outro parte.

A relação entre Benji e David é feita de hesitações, impaciências e tentativas frustradas de reconexão. E ainda assim, o que pulsa ali é amor — mas um amor atravessado por limites, por gestos mal interpretados, por expectativas que nunca foram ditas em voz alta. A recusa do roteiro em oferecer respostas ou redenções confortáveis é um de seus grandes trunfos. O que existe entre os dois não se resolve, não se transforma num clímax redentor. E é nessa negativa que o filme encontra sua potência mais aguda: mostrar que há formas de amor que permanecem truncadas, e mesmo assim são reais.

O que torna “A Verdadeira Dor” tão pungente é sua recusa em manipular a emoção. Em vez de construir cenas que arranquem lágrimas, Eisenberg aposta na ambiguidade, na hesitação, na fragilidade de quem não tem mais palavras. A dor aqui não se performa — ela se infiltra. Culkin, numa atuação memorável, oferece a Benji uma instabilidade genuína: é alguém que oscila entre a ternura e a ruína com naturalidade desconcertante. Cada olhar carrega múltiplas camadas, como se estivesse sempre a um passo do desmoronamento, mas ainda assim buscando, desesperadamente, algum tipo de afeto que o ancore. Já Eisenberg, como David, compreende o valor da contenção. Sua presença, sempre sóbria, é o espelho invertido de Benji — e, por isso mesmo, o torna ainda mais trágico.

Não há respostas em “A Verdadeira Dor”. Há fragmentos. Há tentativas. Há falhas e reconciliações provisórias. Mas acima de tudo, há a coragem de lidar com o que escapa à linguagem. Eisenberg realiza algo raro: um filme que não grita, mas ressoa. Que não explica, mas interroga. Que não quer comover por compaixão, e sim por reconhecimento — daquele tipo de dor que todos, em algum nível, já tentaram esconder sob o verniz da normalidade. E que, como Benji, uma hora transborda.

Filme: A Verdadeira Dor
Diretor: Jesse Eisenberg
Ano: 2024
Gênero: Comédia/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★