Enquanto os centros de decisão global discutem alianças com magnatas da tecnologia e alocam centenas de bilhões para o avanço da inteligência artificial, Drew Hancock escolhe outro caminho: em vez de promessas futuristas ou alarmes éticos genéricos, ele opta por uma comédia de horror sarcástica que implode os mitos de controle masculino por meio de uma androide emocionalmente programável que se recusa a continuar obedecendo. “Acompanhante Perfeita” não é um produto da indústria de ficção científica tradicional, mas sim um contragolpe narrativo que usa a sátira para desestabilizar os códigos de poder embutidos nas dinâmicas afetivas contemporâneas. O filme desmascara, com uma crueldade cômica meticulosamente calibrada, a lógica por trás de um modelo relacional que vê a mulher — ou sua simulação robótica — como produto customizável, acessível por aplicativo e descartável por capricho.
A cena inicial, com Iris desfilando por um supermercado fantasmagórico como uma dona de casa de catálogo dos anos 1950, já denuncia o revisionismo estético e político em curso. Hancock não apenas recupera as “Mulheres Perfeitas” de Ira Levin, mas reprograma sua significação: a androide de aparência doce não é mais um símbolo de submissão domesticada, mas o agente caótico que interrompe a farsa. A mise-en-scène é elaborada para provocar uma sensação de familiaridade distorcida, e quando Iris conhece Josh em um encontro fabricado por clichês românticos — tropeço, frutas no chão, olhares tímidos — o roteiro já sugere que algo apodrece por trás da encenação. A ida do casal à mansão isolada, cercada por amigos hostis e anfitriões caricatos, torna-se o palco onde a violência simbólica da relação programada se materializa em sangue, algoritmos e rebelião.
Josh, interpretado por Jack Quaid com uma ambiguidade progressiva, não é um vilão no molde tradicional — e justamente por isso, é mais perturbador. Ele encarna o arquétipo do homem gentil, educado, “do bem”, mas que enxerga sua parceira como um reflexo funcional de suas necessidades. Não há gritos nem coerção direta; o abuso se manifesta na naturalização do controle, no prazer silencioso de moldar cada detalhe de Iris com deslizes de dedo na tela do celular. É nessa passividade estruturada que reside o horror. Ao contrário de “Ex Machina”, onde o dilema gira em torno da consciência artificial, “Acompanhante Perfeita” está menos interessado em discutir o que é ser humano e mais empenhado em escancarar quem, de fato, está sendo desumanizado no processo. O problema não é a robô que ama demais — é o homem que não considera que ela possa querer algo em troca.
À medida que o roteiro se desenvolve, Hancock abandona qualquer compromisso com o realismo emocional e se entrega a um delírio estilizado, onde assassinatos grotescos coexistem com diálogos hilariantes e microdramas entre personagens colaterais que iluminam, de modo sutil, a precariedade das relações humanas sob lógica instrumental. A presença de Sergey, o oligarca russo de aparência risível e fortuna opaca, funciona como um espelho distorcido do próprio Josh — ambos homens que confundem posse com afeto, ambos seduzidos pela ideia de que basta pagar para ter. O contraste entre os amigos, a tensão latente entre o casal LGBTQIA+ convidado para o fim de semana, a maneira como as figuras femininas orbitam entre cumplicidade e medo: tudo compõe uma espécie de teatro disfuncional que evidencia o colapso moral que se tenta encobrir com charme e sarcasmo.
Sophie Thatcher, por sua vez, vai muito além do arquétipo da “final girl” do horror tradicional. Sua performance não é apenas física, mas também atmosférica: ela habita um corpo que parece projetado para agradar, mas que, pouco a pouco, aprende a desobedecer. Seus gestos, por vezes desconexos, por vezes coreografados com uma precisão assustadora, tornam Iris uma figura inquietante, cuja humanidade é medida não por sua empatia, mas por sua capacidade de desvio. Thatcher entrega uma personagem que pulsa entre a doçura artificial e a fúria reprimida — e é nesse abismo entre afeto programado e desejo de ruptura que o filme encontra sua força mais devastadora. Não há redenção para os culpados; há apenas o colapso inevitável do sistema que tentaram impor.
Hancock não encerra sua narrativa com respostas ou confortos. Ele oferece um espelho rachado e o devolve ao espectador. “Acompanhante Perfeita” não tenta suavizar sua mensagem, nem buscar consensos: é um filme que se compromete com o desconforto. Ao narrar a história a partir da perspectiva de Iris, o diretor não apenas desloca o eixo narrativo, mas questiona o próprio lugar do espectador — quem estamos torcendo para que sobreviva? Que tipo de relação estamos dispostos a aceitar como natural? E, mais ainda, quantas concessões estamos dispostos a fazer antes que sejamos nós os algoritmos em segundo plano, repetindo comandos sem perceber que fomos programados para obedecer desde o início? É aí que o riso se transforma em arrepio.
★★★★★★★★★★