Em “Clube dos Motociclistas”, Jeff Nichols retorna aos holofotes depois de sete anos com um filme que desafia o impulso apressado das narrativas atuais. Seu olhar não é o do romantismo rebelde, tampouco o da nostalgia domesticada: é o de quem compreende que certos ímpetos de pertencimento, por mais intensos que sejam, carregam dentro de si o germe da ruína.
Inspirado nas fotografias de Danny Lyon, o longa se constrói como se estivesse escavando memórias através da poeira das estradas. Mas não há nada de celebratório nessa reconstrução. A ambientação nos arredores de Chicago nos anos 60 é só o pano de fundo para uma investigação mais crua: o que acontece quando o impulso por liberdade vira refém da própria estrutura que criou para protegê-la? O Vandals Motorcycle Club, que começa como abrigo para desajustados e idealistas, logo se vê espelhando a lógica dos grupos que jurava combater. Hierarquias nascem, códigos se impõem, e a camaradagem dá lugar a uma rigidez quase militar, como se o desejo de pertencer tivesse vencido o desejo de ser livre.
O fio narrativo que costura essa metamorfose é a relação entre Kathy e Benny. Mas Nichols não entrega à dupla o papel de eixo tradicional de uma trama romântica. Ao contrário: eles são sintomas de uma tensão maior. Kathy, interpretada com habilidade afetiva por Jodie Comer, não representa apenas uma mulher em meio a um mundo masculino e brutalizado — ela é a testemunha ativa da transformação do clube, a voz que narra os detalhes, mas também quem os sente na pele. Benny, vivido por Austin Butler, é o paradoxo encarnado: uma figura que atrai todos ao seu redor pela aura de mistério e descompromisso, mas que esconde no olhar um desconforto crescente com as obrigações silenciosas que o grupo impõe.
Não há glamour em suas jornadas. Cada gesto, cada silêncio, parece pesar mais do que qualquer palavra. A atuação de Tom Hardy, no papel de Johnny, líder ambíguo do clube, funciona como contraponto direto a Benny. Enquanto o primeiro se esforça para manter viva uma ordem moral construída a partir de referências fictícias — como o impacto de Marlon Brando em “O Selvagem” —, o segundo se retrai diante daquilo que se tornou: um homem aprisionado no próprio arquétipo.
Essa dualidade é acentuada pelo estilo narrativo escolhido por Nichols, que recusa qualquer apelo ao espetáculo. Em vez de recorrer a cenas de ação como válvula de escape, ele permite que os momentos de pausa falem por si. As motos não são enfeitadas — são ferramentas de deslocamento e, aos poucos, de clausura. O barulho dos motores serve mais para encobrir a ausência de diálogo real entre os personagens do que para evocar liberdade. O couro, o metal, as correntes: tudo que deveria simbolizar resistência acaba sugerindo cansaço.
Há, sim, ecos de Scorsese, especialmente na maneira como o grupo desmorona de dentro para fora, sem que ninguém perceba o momento exato em que a camaradagem vira chantagem. Mas Nichols se distancia do tom épico: sua abordagem é quase arqueológica. Ao revisitar o período entre 1965 e 1973, ele não quer capturar um tempo perdido, e sim expor o modo como os sonhos coletivos tendem a se desfigurar quando tropeçam na própria institucionalização. “Clube dos Vândalos” é menos sobre motoqueiros e mais sobre aquilo que nos leva a aceitar códigos em nome de uma suposta proteção — mesmo quando essa proteção custa nossa identidade.
O elenco secundário serve de lente para ampliar essa leitura. Não há figura decorativa aqui: cada rosto periférico carrega um fragmento do colapso. Os coadjuvantes não existem apenas para preencher espaço, mas para espelhar as inúmeras variações do mesmo dilema: quem somos quando desistimos de sair do grupo, mesmo sabendo que ele já não nos representa? A brutalidade que se insinua em pequenas falas, os gestos de lealdade que escondem violência iminente — tudo colabora para a sensação de que algo está sempre prestes a se romper.
Essa contenção emocional talvez explique a recepção dividida ao filme. Há quem o acuse de ser uma cápsula de época ou de priorizar o estilo sobre a ação. Mas é justamente aí que reside sua força. Nichols não está interessado em oferecer clímax artificiais ou redenções forçadas. Seu foco está nos detalhes que o tempo corrói: uma amizade que se desgasta sem brigas, um olhar que evita o confronto, uma vida que continua por inércia.
O que “Clube dos Vândalos” propõe é uma desconstrução. Não do mito do fora-da-lei romântico, mas da estrutura que se ergue em torno dele quando a rebeldia precisa de estatuto. Quando a liberdade se torna uniforme, e a estrada aberta vira trilho. O filme não se apressa em responder — prefere ecoar, como o som de um motor que se afasta e, mesmo distante, continua reverberando no peito.
★★★★★★★★★★