Austin Butler e Tom Hardy em filme baseado em história real sobre clube de motociclistas mais famoso do mundo, no Prime Video Divulgação / Focus Features

Austin Butler e Tom Hardy em filme baseado em história real sobre clube de motociclistas mais famoso do mundo, no Prime Video

Em “Clube dos Motociclistas”, Jeff Nichols retorna aos holofotes depois de sete anos com um filme que desafia o impulso apressado das narrativas atuais. Seu olhar não é o do romantismo rebelde, tampouco o da nostalgia domesticada: é o de quem compreende que certos ímpetos de pertencimento, por mais intensos que sejam, carregam dentro de si o germe da ruína.

Inspirado nas fotografias de Danny Lyon, o longa se constrói como se estivesse escavando memórias através da poeira das estradas. Mas não há nada de celebratório nessa reconstrução. A ambientação nos arredores de Chicago nos anos 60 é só o pano de fundo para uma investigação mais crua: o que acontece quando o impulso por liberdade vira refém da própria estrutura que criou para protegê-la? O Vandals Motorcycle Club, que começa como abrigo para desajustados e idealistas, logo se vê espelhando a lógica dos grupos que jurava combater. Hierarquias nascem, códigos se impõem, e a camaradagem dá lugar a uma rigidez quase militar, como se o desejo de pertencer tivesse vencido o desejo de ser livre.

O fio narrativo que costura essa metamorfose é a relação entre Kathy e Benny. Mas Nichols não entrega à dupla o papel de eixo tradicional de uma trama romântica. Ao contrário: eles são sintomas de uma tensão maior. Kathy, interpretada com habilidade afetiva por Jodie Comer, não representa apenas uma mulher em meio a um mundo masculino e brutalizado — ela é a testemunha ativa da transformação do clube, a voz que narra os detalhes, mas também quem os sente na pele. Benny, vivido por Austin Butler, é o paradoxo encarnado: uma figura que atrai todos ao seu redor pela aura de mistério e descompromisso, mas que esconde no olhar um desconforto crescente com as obrigações silenciosas que o grupo impõe.

Não há glamour em suas jornadas. Cada gesto, cada silêncio, parece pesar mais do que qualquer palavra. A atuação de Tom Hardy, no papel de Johnny, líder ambíguo do clube, funciona como contraponto direto a Benny. Enquanto o primeiro se esforça para manter viva uma ordem moral construída a partir de referências fictícias — como o impacto de Marlon Brando em “O Selvagem” —, o segundo se retrai diante daquilo que se tornou: um homem aprisionado no próprio arquétipo.

Essa dualidade é acentuada pelo estilo narrativo escolhido por Nichols, que recusa qualquer apelo ao espetáculo. Em vez de recorrer a cenas de ação como válvula de escape, ele permite que os momentos de pausa falem por si. As motos não são enfeitadas — são ferramentas de deslocamento e, aos poucos, de clausura. O barulho dos motores serve mais para encobrir a ausência de diálogo real entre os personagens do que para evocar liberdade. O couro, o metal, as correntes: tudo que deveria simbolizar resistência acaba sugerindo cansaço.

Há, sim, ecos de Scorsese, especialmente na maneira como o grupo desmorona de dentro para fora, sem que ninguém perceba o momento exato em que a camaradagem vira chantagem. Mas Nichols se distancia do tom épico: sua abordagem é quase arqueológica. Ao revisitar o período entre 1965 e 1973, ele não quer capturar um tempo perdido, e sim expor o modo como os sonhos coletivos tendem a se desfigurar quando tropeçam na própria institucionalização. “Clube dos Vândalos” é menos sobre motoqueiros e mais sobre aquilo que nos leva a aceitar códigos em nome de uma suposta proteção — mesmo quando essa proteção custa nossa identidade.

O elenco secundário serve de lente para ampliar essa leitura. Não há figura decorativa aqui: cada rosto periférico carrega um fragmento do colapso. Os coadjuvantes não existem apenas para preencher espaço, mas para espelhar as inúmeras variações do mesmo dilema: quem somos quando desistimos de sair do grupo, mesmo sabendo que ele já não nos representa? A brutalidade que se insinua em pequenas falas, os gestos de lealdade que escondem violência iminente — tudo colabora para a sensação de que algo está sempre prestes a se romper.

Essa contenção emocional talvez explique a recepção dividida ao filme. Há quem o acuse de ser uma cápsula de época ou de priorizar o estilo sobre a ação. Mas é justamente aí que reside sua força. Nichols não está interessado em oferecer clímax artificiais ou redenções forçadas. Seu foco está nos detalhes que o tempo corrói: uma amizade que se desgasta sem brigas, um olhar que evita o confronto, uma vida que continua por inércia.

O que “Clube dos Vândalos” propõe é uma desconstrução. Não do mito do fora-da-lei romântico, mas da estrutura que se ergue em torno dele quando a rebeldia precisa de estatuto. Quando a liberdade se torna uniforme, e a estrada aberta vira trilho. O filme não se apressa em responder — prefere ecoar, como o som de um motor que se afasta e, mesmo distante, continua reverberando no peito.

Filme: Clube dos Vândalos
Diretor: Jeff Nichols
Ano: 2023
Gênero: Crime/Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★