Obra-prima impecável vencedora de 5 Oscars, com Leonardo DiCaprio, no Prime Video Divulgação / Produktions KG

Obra-prima impecável vencedora de 5 Oscars, com Leonardo DiCaprio, no Prime Video

Poucos cineastas dominam a arte de transformar obsessão em linguagem como Martin Scorsese. Em “O Aviador”, essa habilidade atinge uma dimensão quase febril: o filme não se limita a narrar a trajetória de Howard Hughes — ele encena o delírio de um homem que, ao tentar controlar o mundo, perde o domínio sobre si mesmo. A escolha por retratar Hughes, figura que encarna simultaneamente o triunfo técnico e a degradação psíquica, revela o interesse de Scorsese por personagens em colapso, não como espetáculo, mas como pulsação da existência. Longe de construir um tributo ou uma condenação, o diretor costura um retrato inquieto de um sujeito dilacerado pela grandeza e pela aflição, que avança como se fugisse do próprio eco.

A grandiosidade do filme pode ser lida como disfarce ou sintoma. Há um fascínio evidente pelas possibilidades visuais — planos exuberantes, reconstruções históricas imaculadas, uso de cores que remetem aos processos antigos de filmagem — mas tudo isso opera como camada de tensão. Não se trata de um luxo gratuito: é excesso como mecanismo narrativo. A opulência do cenário e a rigidez dos detalhes contrastam violentamente com a fragilidade de um protagonista que, por trás dos refletores e das turbinas, coleciona rituais de contenção e silêncio. A magnificência visual não celebra; ela denuncia. O que se vê em tela não é só reconstituição de época, mas o reflexo de uma mente que tenta manter o caos à distância por meio da simetria.

A estrutura do roteiro, ainda que marcada por elipses e cortes abruptos, parece intencionalmente fragmentada, como se o próprio tempo se recusasse a linearizar a jornada de Hughes. Em vez de construir uma escalada dramática com clímax e resolução, Scorsese opta por cenas que funcionam como pulsações de um organismo instável. Momentos como o isolamento em quartos selados, as repetições obsessivas de frases e os gestos ritualísticos de limpeza não funcionam apenas como demonstrações de TOC: são janelas para uma angústia inominável, que se infiltra por entre conquistas e aplausos. Cada crise rompe a ilusão de controle, lembrando que o verdadeiro conflito de Hughes nunca foi com o mundo exterior, mas com o próprio corpo e mente.

Leonardo DiCaprio, em uma de suas performances mais radicais, ultrapassa a imitação para alcançar uma espécie de transfiguração. Não há traço de vaidade na entrega: há um corpo em convulsão constante, tentando se manter inteiro diante da implosão. O olhar, progressivamente mais rarefeito, denuncia aquilo que as palavras não sustentam. A interpretação não apenas acompanha o arco de deterioração; ela o impulsiona, revelando um personagem que desaparece aos poucos de dentro para fora. Cate Blanchett, por sua vez, se move com precisão entre afeto e artifício ao construir uma Katharine Hepburn que não serve de muleta emocional para Hughes, mas de espelho invertido: exuberante, segura, inatingível. O contraste entre os dois fornece uma das tensões mais férteis do filme, em que intimidade e incomunicabilidade se sobrepõem.

Mas há um aspecto irônico em toda essa entrega técnica e emocional: mesmo cercado por grandiosidade, “O Aviador” nunca parece interessado em encerrar sua narrativa com coesão. E talvez seja aí que ele se torne mais honesto. A trajetória de Hughes não comporta catarses nem conclusões. O roteiro, assinado por John Logan, opta por uma sequência de eventos que, embora impressionantes individualmente, resistem a formar uma progressão transformadora. Não há curva de redenção, tampouco queda definitiva. Há, sim, uma repetição de padrões — aproximações e fugas, ascensões e crises — como se a vida de Hughes fosse um loop de genialidade e ruína. O filme parece recusar a própria ideia de síntese, insistindo que a experiência humana, sobretudo quando levada ao extremo, é irredutível a uma narrativa clara.

Esse impasse narrativo pode ser lido como falha ou como gesto radical de fidelidade ao seu objeto. Hughes não foi um homem de arcos; foi um acúmulo de intensidades desconexas. E Scorsese, ao se recusar a “arrumar” essa história, preserva seu desconforto essencial. O espectador, por sua vez, é desafiado a encontrar sentido onde o filme não oferece garantias. Não há lição, não há fechamento moral, não há julgamento. Há, apenas, o desconcerto de observar um homem que tentou voar mais alto do que qualquer um e terminou aprisionado em sua própria cabine.

Talvez o maior risco — e o maior mérito — de “O Aviador” seja não tentar humanizar Hughes no sentido convencional, mas expor com crueza a dissonância entre sua imagem pública e seu colapso íntimo. Ao recusar o sentimentalismo e a linearidade, o filme se transforma em um ensaio sobre a erosão do sujeito moderno, consumido por sua própria capacidade de fazer demais, saber demais, prever demais. A performance de DiCaprio e a direção meticulosa de Scorsese não constroem um herói nem um mártir, mas um sintoma: o de uma era em que o poder de criar mundos não é suficiente para salvar alguém de si mesmo.

Filme: O Aviador
Diretor: Martin Scorsese
Ano: 2004
Gênero: Biografia/Drama/Épico
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★