Poucos personagens resistem ao tempo com tanta obstinação quanto Sherlock Holmes. Contudo, em “Sr. Sherlock Holmes”, o que sobrevive já não é o mito, mas a erosão dele. Bill Condon, em um gesto que ignora os vícios da repetição, propõe um Holmes despido da lenda, desidratado da glória, vivendo seus últimos dias num campo inglês onde o silêncio é menos paz do que um eco moribundo de quem um dia foi sinônimo de certeza. Interpretado com espantosa delicadeza por Ian McKellen, o detetive já não habita os becos nebulosos da dedução genial, mas as brumas internas da memória vacilante, enquanto tenta reconstituir a última verdade antes que ela se dissolva por completo.
O filme rompe com a expectativa do enigma externo para sondar uma questão muito mais angustiante: como vive alguém cuja identidade foi moldada pela clareza do raciocínio quando essa mesma clareza começa a se despedaçar? Em vez da ação cerebral típica das histórias do personagem, o roteiro recorre ao tempo como artifício narrativo. Alternando entre um presente silencioso, lembranças desconexas e um passado soterrado pela culpa, a narrativa ergue uma espécie de arqueologia emocional. Cada memória reconstruída não é apenas parte de um caso antigo, mas uma tentativa desesperada de Holmes de salvar a si mesmo da diluição.
Roger, o menino curioso e inteligente que convive com o velho Holmes, não é aprendiz de detetive, mas um catalisador de uma ternura inesperada. É por meio desse vínculo intergeracional — muitas vezes ríspido, quase sempre contido — que o detetive, tão afeito à lógica, descobre a potência transformadora de um afeto que não precisa ser declarado para ser profundo. A relação entre os dois não compensa a decadência mental, mas concede a ela um sentido. A convivência com Roger devolve a Holmes algo que ele nunca soube nomear, e que talvez sempre tenha temido: a possibilidade de se deixar tocar.
Em um jogo de espelhos cuidadosamente construído, o passado retorna não como lembrança, mas como ferida aberta. A mulher chamada Ann Kelmot — presença fugidia e marcante — representa o caso não resolvido, o enigma que não se deixou decifrar, não por sua complexidade, mas por exigir de Holmes algo que ele nunca ofereceu: empatia. O suposto fracasso da lógica diante da dor alheia reverbera na mente já enfraquecida do detetive como um tipo de castigo tardio. O mistério, neste caso, não exige dedução, mas luto. Ann não é uma personagem que precisa ser compreendida, mas lamentada. E é essa mudança de paradigma que transforma Holmes de um cérebro infalível em um homem que finalmente compreende o preço de sua rigidez emocional.
A estrutura elíptica do filme — com seus saltos temporais e memórias incompletas — traduz de forma poderosa o colapso de uma mente antes imbatível. Não há pressa nas revelações, nem qualquer desejo de clímax. Cada cena se demora no que resta de lucidez, cada gesto é carregado de uma urgência que não grita. A encenação de Condon, discreta e contida, renuncia ao espetáculo em nome da observação. E McKellen, longe de buscar compaixão fácil, constrói um Holmes cansado, mas ainda lutando contra o esquecimento com a obstinação de quem nunca soube desistir.
O subtexto ganha espessura quando se considera o ator por trás do personagem. McKellen, homem de trajetória pública marcada pela quebra de tabus, encarna um Holmes que viveu fora das normas afetivas e sociais — um homem cuja sexualidade sempre foi tema de especulação, mas nunca de confissão. Essa ambiguidade, tão característica do detetive, encontra aqui uma ressonância sutil, nunca verbalizada, mas visível nos silêncios e nos olhares. Há um isolamento que não é apenas da idade, mas de uma vida inteira passada à margem de vínculos verdadeiros. Nesse sentido, o filme sugere que a genialidade também pode ser uma forma de exílio.
O cenário rural, com seus campos úmidos e árvores que sussurram o fim de algo, funciona como uma metáfora visual da mente de Holmes: espaçosa, silenciosa, mas povoada por espectros. A trilha sonora, composta com precisão por Carter Burwell, evita sublinhar emoções e prefere insinuá-las, reforçando a atmosfera rarefeita de uma história contada menos com palavras do que com ausência. E é justamente essa ausência — de ação, de respostas definitivas, de certezas — que transforma o filme em uma elegia da mente que se desfaz.
“Sr. Sherlock Holmes” não busca restaurar a lenda, mas desarmá-la com compaixão. E ao fazê-lo, descobre algo que as adaptações anteriores jamais ousaram tocar: o homem por trás do mito pode ter sido menos brilhante do que pensávamos, mas, nos instantes finais, foi mais humano do que jamais imaginamos.
★★★★★★★★★★