A comédia que ninguém viu chegando — agora está no Top 3 da Netflix em 77 países e virou o motivo perfeito pra você não sair de casa Divulgação / Netflix

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A longevidade da obra de Shakespeare não se deve apenas à beleza verbal de seus versos, mas à maleabilidade com que seus dramas se moldam aos contextos mais díspares. “A Família Khumalo”, sob a direção da sul-africana Jayan Moodley, reconstrói as tensões de “Romeu e Julieta” dentro de uma sociedade marcada por cicatrizes coloniais, divisões de classe e moralismo travestido de tradição. A ambientação em Umhlanga — enclave abastado à beira do Índico — não apazigua os conflitos, mas escancara os abismos sociais e afetivos ainda vigentes. Duas famílias com passados entrelaçados se tornam rivais, não por razões épicas, mas por mágoas mal resolvidas, ressentimentos herdados e um apego desmedido à aparência de estabilidade. Nesse campo minado, um romance universitário clandestino se desenha, cercado por beijos ocultos, disputas de poder estudantil e a ameaça constante da vigilância materna.

A estratégia narrativa das roteiristas Gillian Breslin e Wendy Gumede é subverter o realismo com a farsa, convertendo cada cena em um espaço de tensão cômica, onde o riso, por vezes nervoso, opera como válvula de escape e denúncia. As famílias Khumalo e Sithole, mais do que antagonistas, funcionam como espelhos distorcidos de um mesmo desejo de pertencimento e controle. O reencontro entre Grace e Bongi, antigas amigas separadas pelas vicissitudes da vida, reacende um fogo cruzado de acusações e melancolias mal digeridas. O cerne do filme, no entanto, não é a inimizade em si, mas o que ela encobre: o medo da mudança, a culpa pela ruptura e a incapacidade de lidar com afetos que desafiam expectativas rígidas.

Moodley articula as camadas emocionais com notável senso de ritmo, recortando a realidade sul-africana com pinceladas de ironia e delicadeza. A jovem paixão entre Sizwe e Sphe, que não cede ao niilismo romântico trágico da fonte shakespeariana, se afirma como gesto de resistência: amar, aqui, não é se render ao destino, mas criar um novo. Jesse Suntele e Khosi Ngema emprestam frescor e carisma aos personagens, enquanto Khanyi Mbau e Ayanda Borotho imprimem densidade emocional às matriarcas em confronto, sem jamais cair na caricatura. A tensão entre passado e presente, orgulho e reconciliação, estrutura e impulso, alimenta cada conflito com uma vitalidade que impede qualquer automatismo.

O filme sugere, sem recorrer a didatismos, que o riso pode ser um caminho legítimo para tratar o trauma, e que as estruturas sociais herdadas — sejam elas de ordem racial, econômica ou familiar — só se renovam quando se confrontam com a imprevisibilidade dos sentimentos. A força de “A Família Khumalo” reside justamente em sua recusa ao cinismo: mesmo quando se enreda nas farsas, nas intrigas e nos excessos melodramáticos, há sempre um fio de ternura ligando seus personagens, como se o afeto, mesmo ferido, pudesse ainda ser um ponto de partida.

O mérito maior da diretora é transformar um embate doméstico em microcosmo de uma sociedade em transição, sem abdicar do humor e da emoção. A guerra de egos e silêncios entre as matriarcas não é apenas engraçada ou dolorosa: é também política. Ao reencenar “Romeu e Julieta” com corpos negros, sotaques locais e códigos culturais próprios, o filme não adapta o clássico — ele o reconquista, deslocando sua universalidade para um terreno concreto e vibrante. Aqui, Shakespeare não é homenageado: é desafiado, desobedecido, e por isso mesmo, revigorado.

Filme: A Família Khumalo
Diretor: Jayan Moodley
Ano: 2025
Gênero: Comédia/Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★