Ele era um gênio em Yale, mas morreu como suspeito de tráfico: a história real por trás do novo filme que está chocando o mundo na Netflix Divulgação / Republic Pictures

Ele era um gênio em Yale, mas morreu como suspeito de tráfico: a história real por trás do novo filme que está chocando o mundo na Netflix

Num país obcecado por narrativas de exceção, onde histórias individuais frequentemente são lidas como alegorias nacionais, “Rob Peace” propõe uma provocação mais densa: e se o prodígio for, ao mesmo tempo, herói e refém de sua própria promessa? A trajetória de Rob, jovem negro de inteligência incomum que sai das periferias de East Orange para a elitista Yale, escapa à lógica binária que estrutura tanto o sucesso meritocrático quanto o fracasso moral. Chiwetel Ejiofor, ao adaptar o livro de Jeff Hobbs, enfrenta o desafio de retratar essa vida real com a complexidade que ela exige — e, no processo, também esbarra nos limites do cinema como instrumento de representação social. O filme, mesmo quando falha em suas costuras narrativas, atua como sintoma de um mal-estar maior: a dificuldade em contar histórias negras sem torná-las réplicas de um molde que prioriza a dor como única chave de acesso à grandeza.

A infância de Rob já carrega as sementes dessa ambiguidade. Criado por uma mãe exausta que encara jornadas triplas e por um pai afetivo, porém aprisionado em uma economia paralela, ele transita desde cedo entre dois mundos que o exigem em excesso: a rigidez escolar dos monges beneditinos e a lógica de sobrevivência das ruas. Seu talento matemático e científico, que poderia ser a âncora de uma ascensão linear, é desviado para resolver problemas que nenhuma criança deveria assumir: custear os advogados do pai, condenado por um crime envolto em incoerências processuais. Cultivar maconha de laboratório, para Rob, não é rebeldia — é um cálculo. Uma operação de engenharia social onde a ciência deixa o laboratório e se converte em ferramenta de libertação. Ou assim ele tenta acreditar. O dilema ético que essa equação sugere nunca é resolvido — e é nessa suspensão que reside a verdadeira tensão dramática do filme.

Ejiofor, ao interpretar o próprio Skeet, transforma o personagem em mais do que uma sombra carcerária. Ele o compõe como um espelho imperfeito daquilo que Rob teme se tornar e, ao mesmo tempo, como a figura que lhe ensinou o valor da lealdade. Mas essa construção ganha contornos mais ásperos à medida que o pai passa da gratidão à cobrança, deslocando o eixo do afeto para o da obrigação. Esse movimento é sutil e devastador, e Jay Will, no papel de Rob, responde com uma performance de múltiplas camadas — uma espécie de carisma nervoso que mascara a exaustão de quem precisa performar excelência em todas as esferas da vida. Essa atuação carrega o filme nas costas, sobretudo quando o roteiro, em sua tentativa de condensar uma existência inteira em pouco mais de duas horas, reduz os coadjuvantes a funções temáticas. Namorada, professora, colegas: todos orbitam Rob sem, de fato, interagir com sua interioridade.

Talvez por isso “Rob Peace” seja mais eficaz como uma constelação de cenas do que como arco narrativo. Ejiofor opta por uma estrutura que salta de um clímax ao outro, abdicando de transições mais orgânicas em nome da intensidade emocional. É uma escolha que provoca, mas também fragiliza. Momentos de genuína força dramática convivem com outros onde o filme parece apenas acelerar em direção à próxima crise. Há, por trás dessa pressa, uma tensão entre o desejo de prestar tributo a uma vida interrompida e a obrigação de adaptá-la aos limites do gênero biográfico. Isso se reflete na câmera, que por vezes se contenta em registrar, sem intervir, esperando que os atores sustentem a cena sozinhos. Quando isso funciona — como nos diálogos entre Rob e Skeet — o resultado é dilacerante. Mas, em outras situações, revela a hesitação de um diretor que parece ainda buscar uma linguagem para lidar com o peso daquilo que escolheu contar.

O ponto de inflexão mais inquietante do filme talvez esteja em sua recusa, ainda que parcial, de transformar Rob em mártir. Ao contrário do que muitos roteiros fariam, Ejiofor não o isenta de escolhas controversas. Ao mesmo tempo em que é um estudante brilhante, Rob é também um estrategista ambíguo, um empreendedor da urgência, alguém que decide se comprometer com uma batalha familiar mesmo que isso custe sua paz. Ele fala em regenerar seu bairro, em usar a lógica dos sistemas biológicos para redesenhar comunidades, mas o filme não se interessa em desenvolver essas ideias — e essa omissão parece menos uma falha do roteiro e mais uma metáfora: o futuro que Rob vislumbrava nunca teve tempo de ser arquitetado. Como tantos homens negros nos Estados Unidos, ele foi obrigado a ser adulto antes de experimentar a juventude. Condenado a lutar em múltiplas frentes, acabou vivendo sob o peso de um potencial que nunca pôde se realizar por inteiro.

No limite, “Rob Peace” é um experimento que interroga a própria noção de heroísmo. Ele não se ancora em gestos grandiosos nem em arcos redentores, mas sim na complexidade sufocante de viver com promessas não cumpridas. Ejiofor não oferece respostas fáceis — e talvez esse seja seu maior acerto. Ao invés de buscar uma catarse, ele propõe um impasse: como honrar uma inteligência que foi compelida a resolver dilemas que o sistema se recusa a enfrentar? Como narrar uma história que, mesmo sem o status de grandes feitos históricos, carrega a densidade trágica de uma vida que tentou, desesperadamente, vencer? Se o filme não alcança sua plenitude como cinema, ele a reivindica como gesto. E isso, por si só, já é mais do que muitas narrativas ousam tentar.

Filme: Rob Peace
Diretor: Chiwetel Ejiofor
Ano: 2024
Gênero: Biografia/Drama
Avaliação: 7/10 1 1
★★★★★★★★★★