“O Brutalista”, de Brady Corbet, percorre uma rota de colisão com o espectador e transforma esse caminho em seu próprio campo de experimentação estética, política e emocional. Longe de buscar uma história reconfortante ou uma trajetória de consagração previsível, o filme se ergue sobre ruínas simbólicas: o fracasso do sonho americano, a mutilação da identidade e a arquitetura como espelho da alma. Não trata de uma experiência que se consome; mas de uma vivência que resiste, provoca e exige.
A escolha de começar o filme como um épico tradicional para, em seguida, implodi-lo, não representa apenas uma quebra de forma. É um gesto estético que traduz um incômodo profundo com as estruturas narrativas consagradas. Corbet não desconstrói por vaidade, mas como uma forma de rejeição da linearidade reconfortante que domestica o olhar e dilui o impacto. O que vemos é uma narrativa que, ao se desarticular, revela suas feridas e obriga o espectador a confrontar as dele. Ao dividir o filme em duas partes contrastantes, o diretor parece sugerir que toda tentativa de ascensão é, na verdade, uma antecâmara para a queda.
No centro desse colapso está László Toth, arquiteto judeu húngaro cuja trajetória não é apenas marcada pela fuga do pós-guerra, mas por uma migração existencial. Ele não escapa apenas da Alemanha devastada, mas de um passado que insiste em corroer o presente. Interpretado por Adrien Brody com uma contenção que beira a implosão, László não é um personagem que se explica: é um homem que silencia. E é justamente nesse silêncio que o filme encontra sua brutalidade. As expressões contidas, os olhares desviados, as ausências vocais dizem mais sobre a brutalidade do pertencimento negado do que qualquer discurso inflamado.
A arquitetura, aqui, não é apenas ocupação ou estética: é uma linguagem de sobrevivência. As estruturas projetadas por László revelam mais sobre ele do que suas falas. Cada linha reta, cada volume de concreto parece carregar um desejo frustrado de permanência em um país que exige constante reinvenção. A brutalidade do estilo arquitetônico escolhido pelo protagonista ecoa sua interioridade: funcional, austera, impenetrável. Nessa perspectiva, o filme transforma os espaços em extensões emocionais dos personagens. O que se ergue à nossa frente não são apenas edifícios, mas estruturas de defesa contra a erosão da identidade.
Felicity Jones e Guy Pearce surgem como vértices de uma tensão que jamais se resolve, contribuindo para o desequilíbrio emocional que sustenta a narrativa. Suas atuações não buscam empatia, mas evidenciam as zonas de conflito onde o afeto é contaminado por interesses, expectativas e frustrações. Ninguém sai ileso desse encontro: cada relação é uma faísca que incendeia as contradições do que significa pertencer.
A decupagem visual aposta na densidade. Rodado em 35mm, o filme adquire uma textura quase tátil, como se cada fotograma carregasse o peso da memória. A montagem elíptica, por sua vez, desafia a linearidade temporal e exige que o espectador se desloque, se perca, se reconstrua. Não há concessões: a experiência fílmica é um mergulho em camadas que se sobrepõem e se contradizem. É nesse movimento de conflito que o filme alcança sua dimensão mais política. “O Brutalista” não quer que concordemos com ele; quer que sintamos o desconforto de não saber o que pensar.
O roteiro, mais do que um guia narrativo, é um convite ao estranhamento. Os temas da imigração, do deslocamento, do pertencimento negado e do vínculo familiar despedaçado não aparecem como tese, mas como espectros que assombram cada decisão dos personagens. E é essa recusa em oferecer “respostas” que transforma o filme em uma experiência transformadora. O espectador não assiste; ele atravessa o filme.
O que resta não é uma conclusão, mas uma inquietação persistente. “O Brutalista” é menos uma história contada e mais uma física do impacto: desloca, abala, desestrutura. Seus ecos permanecem, não porque encerram algo, mas porque abrem fendas. Em um cinema cada vez mais obcecado com estruturas fechadas e resoluções fáceis, Corbet entrega um monumento à incompletude. E talvez seja justamente isso que nos compele a revisitá-lo: a sensação de que, mesmo após as luzes se acenderem, o filme ainda continua em ruínas dentro de nós.
★★★★★★★★★★