A figura de Deus, longe de ser um conceito fixo ou universalmente compreendido, é um espelho das inquietações humanas. Ora Messias, ora algoz, ora espectador indiferente, o divino se remodela de acordo com a fome metafísica de cada geração. Thomas Hobbes, ao enxergar a existência como um percurso dominado pela sordidez e pela brutalidade, compôs um retrato sombrio da experiência humana — e dentro desse retrato, Deus se converte em hipótese de consolo ou ameaça. A fé, ao transitar entre o rito e o delírio, entre o dogma e a epifania, encontra em Spinoza a ousadia de sugerir uma divindade intrínseca à matéria, dissolvendo a fronteira entre Criador e criatura. Mas talvez seja justamente essa fusão entre transcendência e decadência que mais assuste o homem moderno: a ideia de que o sagrado não se impõe de fora, mas nasce daquilo que ele mesmo é — um amálgama de angústia, desejo e finitude.
Neste contexto, “A Paixão de Cristo” não pretende evangelizar quem a rejeita, tampouco tranquilizar o convertido. O que Mel Gibson constrói é uma imersão em estado bruto, capaz de reafirmar convicções ou esgarçá-las pelo excesso. Sua recriação da derradeira travessia de Jesus reconfigura o sagrado como espetáculo físico, em que cada ferida, cada queda, cada escarro encontra no espectador um espelho desconfortável. A escolha de “paixão” como conceito central vai além da fidelidade teológica: é uma convocação ao desconforto. Na acepção original, passio, o sofrimento voluntário, representa a entrega como prova última de um amor que exige dor. E ao tornar visível essa dor de maneira quase insuportável, o filme sugere que o sacrifício jamais poderia ser entendido como metáfora — ele exige carne, sangue e grito.
A estrutura narrativa, ancorada nas 14 Estações da Via Sacra, evoca não apenas a familiaridade do rito, mas também sua força simbólica. Ao compor o percurso da agonia como um rosário de imagens duras e momentos de contemplação, Gibson dissolve a linha entre ficção e memória coletiva. Há, sim, um artifício operando — e ele não pede permissão. A violência não é incidental, mas método. Se a intenção foi realmente conduzir o público à reflexão pela exaustão moral, o cineasta executa o intento com precisão cirúrgica. Desde o início, no Jardim das Oliveiras, a atmosfera é de cerco e presságio, onde até o silêncio pesa. Não há como não sentir que aquele homem, embora Deus, é também visceralmente humano. E por isso mesmo, o medo que o paralisa nos primeiros minutos não é simbólico — é palpável, quase nosso.
Em um dos gestos mais provocativos do filme, o demônio é representado por uma mulher. Não uma figura grotesca, mas uma entidade ambígua, onde o magnetismo e o asco se entrelaçam. Rosalinda Celentano desempenha com exatidão essa duplicidade inquietante, dando corpo ao tipo de tentação que seduz pela lógica e repele pela intuição. Ao lado disso, o uso do aramaico e do latim não é um capricho estilístico, mas uma escolha que reconfigura o tempo narrativo, imergindo o espectador em uma experiência ritualística que parece deslocada da linearidade histórica. Quando Jesus suplica ao Pai para que o liberte daquele cálice de desespero, ouvimos não só uma prece, mas o colapso de um homem diante do inexorável. E ao clamar “Eli Eli Lamá Sabactâni”, não há tradução que amenize o abismo do abandono.
A atuação de Jim Caviezel dispensa adornos. Sua presença em cena não depende de discursos ou gestos heroicos, mas da entrega absoluta ao papel — uma encarnação que dispensa explicações. Cada olhar, cada espasmo de dor, carrega consigo uma tensão que não se dissolve com os créditos finais. No entanto, a opção por encerrar o filme na crucificação abre uma lacuna estranha. Não pela ausência da ressurreição em si, mas pelo vazio narrativo que se instala, como se faltasse uma nota final ao compasso dramático construído com tanto rigor. A promessa de continuação em outro longa transmite mais a lógica da serialização do que a de um fecho simbólico. O impacto persiste, mas a suspensão enfraquece o que poderia ter sido uma conclusão devastadora no melhor dos sentidos.
É possível que “A Paixão de Cristo” tenha sido concebido menos como um filme e mais como um rito. Não no sentido da liturgia previsível, mas no da experiência radical. Não se trata de confirmar dogmas, mas de forçar o olhar a não desviar. E se há lágrimas ao final, talvez não sejam apenas de comoção religiosa, mas da constatação de que há algo profundamente incômodo em assistir à dor alheia como espetáculo — e mesmo assim não conseguir desviar os olhos. Esse é o verdadeiro escândalo da fé.
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