Sob uma camada espessa de sarcasmo e sangue coagulado, “Noite Infeliz” desponta como um artefato cinematográfico que desafia expectativas e embaralha gêneros. Longe de ser apenas uma paródia ensandecida de clássicos natalinos ou uma cópia desinibida de “Duro de Matar” com gorro e barba branca, o longa dirigido por Tommy Wirkola implode as convenções do feriado para reconstruí-las à base de marteladas brutais e paradoxal ternura. Ao flertar com o pastiche e a autoparódia, o filme encontra um raro equilíbrio: escarnece da iconografia do Natal enquanto procura, em meio à carnificina, um motivo legítimo para ainda acreditar em milagres. O resultado é um thriller festivo que se recusa a ser inofensivo — um conto de redenção escrito com tinta vermelha e fragmentos de vidro.
Na pele de um Papai Noel que mais se assemelha a um soldado aposentado da brutalidade nórdica do que a um mascote publicitário da felicidade açucarada, David Harbour entrega uma performance que transita entre o grotesco e o comovente com desconcertante fluidez. Esse Papai Noel não ri — rosna. Não voa — tropeça. Não distribui esperança — mas se deixa contagiar por ela, lentamente, como alguém que se esqueceu do próprio papel e, ao reencontrá-lo, o veste com relutância e fúria. A construção do personagem se ancora em contradições: um homem milenar e exausto, que já empunhou martelos de guerra antes de entregar presentes, e que agora arrasta correntes emocionais tão pesadas quanto as que rompe com seus punhos. A comunhão inesperada com Trudy — a menina que, em meio ao caos, ainda acredita em magia — serve como a centelha que reacende um propósito há muito enterrado. Leah Brady, com sua atuação contida, livra a personagem da armadilha do sentimentalismo, tornando-a crível o suficiente para justificar o renascimento simbólico do velho Noel.
A espinha dorsal do enredo é construída sobre o esqueleto de uma invasão domiciliar que mistura ecos de “Esqueceram de Mim” com pulsos de “John Wick” e uma pitada de “Papai Noel às Avessas”. Mas, ao invés de suavizar as arestas, Wirkola as afia. Vilões caricaturais, liderados pelo Mr. Scrooge de John Leguizamo, caminham entre o risível e o ameaçador, servindo de estopim para sequências de ação que oscilam entre o coreografado e o absurdo. Bastões de doces transformam-se em estiletes, estrelas de árvore viram projéteis — o Natal, aqui, é um arsenal. O excesso deixa de ser um defeito e vira a estética do filme: cada cena mergulha mais fundo no delírio, e quanto mais irreal o espetáculo, mais libertador ele se torna. As incongruências narrativas, como a hesitação inexplicável dos criminosos ou a resistência milagrosa do protagonista, não chegam a sabotar a experiência; antes, ampliam seu caráter de fábula deformada, onde a lógica cede lugar ao simbolismo.
Por mais contraditório que pareça, “Noite Infeliz” é um filme que nutre fé — não uma fé ingênua ou catequética, mas uma crença raivosa e remendada de que mesmo os mais quebrados ainda podem servir a um propósito. A violência, longe de ser mero espetáculo, funciona como catarse. Cada osso quebrado e cada parede manchada de sangue representam, em última instância, uma tentativa de restaurar valores soterrados sob o cinismo do presente. Em um gênero que frequentemente recorre à ironia como muleta, o longa se destaca por sua entrega quase ingênua à própria loucura. Ele se permite sentir, mesmo quando tudo à sua volta grita o contrário. Isso é o que torna a performance de Harbour tão poderosa: ele acredita, de alguma forma, naquilo que interpreta — e essa crença irriga até as passagens mais insanas com uma dignidade inusitada.
Há, portanto, um estranho lirismo na carnificina. A mansão dos Lightstone, com sua família disfuncional e decorações reluzentes, funciona como uma alegoria do próprio Natal contemporâneo: uma festa de aparências, onde o afeto foi terceirizado e a magia substituída por consumo. Ao invadir esse espaço com brutalidade e sarcasmo, Wirkola não está apenas zombando das tradições — ele está propondo sua reconstrução por vias violentas. A destruição, aqui, é um método para desenterrar algo que foi perdido — talvez a ideia, quase utópica, de que mesmo os cínicos ainda podem ser tocados por um gesto genuíno. E quando esse gesto vem, não é envolto em fitas, mas em cicatrizes.
“Noite Infeliz” não é só uma anomalia de dezembro. É uma provocação. Um lembrete de que o sagrado também pode nascer do grotesco. Que há espaço, mesmo no caos, para lampejos de esperança — desde que estejamos dispostos a escavar fundo o bastante, mesmo que seja com os punhos. O filme não oferece consolo, mas deixa um presente amargo: a percepção de que o Natal, quando despojado de sua verniz decorativa, ainda pode significar algo real. Para os que já desistiram de acreditar, talvez isso seja mais milagroso do que qualquer trenó voador.
★★★★★★★★★★