O fenômeno que quebrou todos os recordes e entrou para a história como a animação mais lucrativa de todos os tempos Divulgação / CMC Pictures

O fenômeno que quebrou todos os recordes e entrou para a história como a animação mais lucrativa de todos os tempos

Quando um país projeta suas lendas para o mundo, o que se revela não é apenas a ficção que escolhe contar, mas o tipo de poder simbólico que ambiciona exercer. “Ne Zha 2”, fenômeno animado vindo da China, não ascendeu por acaso ao topo das bilheteiras globais. Trata-se de um caso emblemático de insurgência criativa contra o antigo paradigma de cinema estatal, centralizado e previsível. Com direção de Jiaozi — um autodidata que abandonou a publicidade para se aventurar em um terreno que dominava apenas por intuição —, o longa desafia expectativas tanto pelo volume de sua recepção quanto pela forma como incorpora, distorce e reveste de ironia sua bagagem mitológica. Os números são impressionantes, mas o que realmente sustenta o impacto cultural do filme é o modo como ele canaliza a herança do wuxia para dentro de uma estética que combina caos, delírio visual e um senso de comicidade cruelmente inteligente.

Nada no enredo facilita a vida do espectador estrangeiro — e talvez essa seja uma de suas estratégias mais eficazes. “Ne Zha 2” implode qualquer ideia de narrativa linear, optando por uma arquitetura mitológica labiríntica, onde nomes, entidades e artefatos se acumulam como peças de um quebra-cabeça destinado a permanecer incompleto. Um protagonista que perdeu o corpo após ser atingido por uma ira celestial. Um dragão nobre condenado a coabitar esse corpo. Uma cidade invadida por forças demoníacas que carregam mágoas ancestrais. Um ritual de reencarnação interrompido por vinganças cruzadas. A trama opera como uma máquina de excesso: quanto mais ela gira, mais elementos ela absorve, numa lógica quase centrífuga. Mas essa complexidade não deve ser lida como obstáculo narrativo, e sim como manifestação de uma confiança artística rara — a confiança de que a experiência estética, em sua torrente incontrolável, pode prescindir da plena compreensão lógica.

E de fato, a força do filme reside menos na compreensão e mais na rendição. Há uma dimensão ritualística na forma como Jiaozi organiza suas batalhas, seus duelos sobre bambus flutuantes, seus exércitos suspensos em nuvens bélicas, seus artefatos de poder que extrapolam o grotesco. Em certos momentos, a estilização alcança uma intensidade que faria tremer cineastas de ação consagrados: um polvo sacrifica os próprios tentáculos para alimentar soldados; um espelho mágico responde com sarcasmo a uma pergunta narcisista; demônios se revezam entre a ameaça e a palhaçada. Essa justaposição entre o apocalíptico e o escatológico, entre o épico e o vulgar, configura um sistema estético que desafia qualquer binarismo convencional entre humor e solenidade. O que Jiaozi elabora é um tipo de fabulação visual que se assemelha a um transe: o espectador não é guiado, mas empurrado — e, uma vez em queda, ou se entrega ou será expelido.

Diante disso, não surpreende que a estrutura tradicional de desenvolvimento dramático ceda lugar a uma progressão emocional impulsionada por imagens que beiram o alucinatório. Ne Zha, com seus olhos vibrantes e temperamento de um adolescente destrutivo, não se comporta como um herói em busca de redenção, mas como uma entidade em guerra com os próprios impulsos, dividindo espaço — literalmente — com um antagonista convertido em aliado. Essa fusão corporal entre dois opostos é, na verdade, o reflexo mais honesto do filme: um hibridismo desconfortável, instável, que jamais se resolve em harmonia. Tudo se move, tudo colide, tudo explode — e mesmo os momentos de ternura ou compaixão são instáveis, quase sempre entrecortados por algum gesto de violência ou piada absurda. Se há um centro moral nesse universo, ele está condenado à relatividade: o que vale é sobreviver à próxima cena.

Mas talvez a contribuição mais audaciosa de “Ne Zha 2” seja sua recusa em suavizar a própria identidade para se tornar palatável ao gosto internacional. O filme é chinês até o osso — e não por orgulho nacionalista, mas por vocação estética. A aposta é clara: em vez de ajustar o conteúdo ao que Hollywood espera da China, Jiaozi subverte as expectativas e propõe um novo paradigma de espetáculo, no qual a estética do excesso se transforma em linguagem legítima. Essa insubmissão estilística aponta para algo maior do que um êxito de bilheteria: revela uma maturidade criativa que não teme ser indomável. E se o filme exige que o espectador aceite não entender tudo, é porque pressupõe algo raro no cinema industrial: a disposição de confiar na inteligência alheia — ou, ao menos, em sua curiosidade.

Filme: Ne Zha 2
Diretor: Yu Yang
Ano: 2025
Gênero: Animação/Aventura/Drama/Fantasia
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★